A imagem dos Intelectuais no
século XXI: As dificuldades de entender o papel social dos Intelectuais na
sociedade contemporânea*
Jean FABIEN**
RESUMO
Este trabalho, ao traduzir uma preocupação intelectual e nascer num
único objetivo, o de compreender o que é um Intelectual
hoje e seu papel na sociedade contemporânea, tem por finalidade de mostrar os
caráteres ambíguo e híbrido do intelectual hoje. Este objetivo está acompanhado
de algumas questões: quem podemos chamar, sem risco de se enganar, de intelectual nas sociedades a pós-modernas cheias de
contradições, de controversas e de problemáticas? O que hoje define um
intelectual: engajamento à causa universal e humanitária, a uma causa social e
política dos mais pobres, exibição e shows midiáticos, servir uma classe
dominante e reproduzir seus valores em detrimento dos explorados, se consagrar
a escrever livros e artigos, fazer pesquisas? O papel da sociologia é compreender,
interpretar, conceptualizar, teorizar e problematizar as dinâmicas dos
fenômenos sociais dos quais o surgimento dos Intelectuais faz parte. Assim, sendo uma reflexão sobre o estatuto
e a função social dos Intelectuais, este artigo pretende discutir a imagem que
projetam os intelectuais hoje no século XXI, problematizar seu papel e seu
lugar na sociedade assim como as relações que se mantêm entre eles e as mídias
levando em conta todo seu poder de divulgação, de propaganda, de exibição e de
visibilidade.
ABSTRACT
This work, to translate an intellectual concern and born in one goal,
to understand who an Intellectual today
and its role in contemporary society, aims to show the ambiguous and hybrid
characters intellectual today. This objective is accompanied by some questions:
Who can we call it, with no risk of cheating, intellectual in the societies postmodern
full of contradictions, controversial and problematic? What we now define an
intellectual: commitment to universal and humanitarian cause, a social cause
and politics of the poor, display and media shows, serve a ruling class and
play your values at the expense of the exploited, to devote to writing books
and articles, do researches? The role of sociology is to understand, interpret,
conceptualize, theorize and discuss the dynamics of social phenomena of which
the emergence of Intellectuals part. So, being a reflection on the status and
the social function of the intellectuals, this article aims to discuss the
image that the intellectuals project today in the XXI century, questioning
their role and their place in society and the relationships that are maintained
between them and the media taking into account all their power of
dissemination, advertising, exhibition and visibility.
Introdução
O debate em torno dos Intelectuais transcende
e ultrapassa os campos filosófico e literário, já consiste, a partir do fim do
século XIX e início do século XX, um tema problemático, mas crucial e central para
pensar as ciências sociais, porque os intelectuais são atores influentes das
transformações sociais e vetores que despertam a consciência coletiva. Problemático,
primeiro, a respeito da origem e da definição do conceito de Intelectual em si, segundo, porque este
conceito nasceu num contexto sociopolítico e histórico muito polêmico[1] e
controverso, terceiro, quando se tratar de entender e definir as relações dessa
camada social com as outras camadas sociais, como, por exemplo, a sociedade,
seja civil ou política, a classe média, a classe dominante e a mídia. A
sociologia, em particular, propõe um olhar preferencial e diferencial a
respeito da figura do intelectual, como grupo social privilegiado, ao invés da
do escritor ou do autor. Daí, a sociologia dos intelectuais – parte da
sociologia contemporânea muito recente que se interessa pelo estatuto social do
intelectual – já vem enfrentando dificuldades enormes dentre as quais
gostaríamos de sublinhar ao menos duas. A primeira é entender, de um lado, o
papel e o lugar dos intelectuais na vida social, política e cultural,
sobretudo, no espaço público, referindo-nos à conceptualização habermassiana,
onde intervêm frequentemente, do outro, suas relações com a classe dominante e a
classe oprimida. O segundo desafio diz
respeito à análise das relações que se mantêm entre eles e as mídias, quando,
particularmente, se tratar de saber quem
vai atrás do outro em primeiro, quem dá visibilidade a quem, quem torna quem
celebre e famoso, as mídias ou os intelectuais? Será que as mídias estão
querendo impor hoje um outro modelo de intelectual?
Nesse sentido, o grande debate na sociologia hoje é isso: entender o
papel social real do Intelectual levando
em consideração as novas formas de colonização do conhecimento e de dominação
ideológica e simbólica das palavras no século XXI. Por exemplo, o fato de que hoje
estamos assistindo um certo populismo
intelectualista[2]
e uma espectacularização televisiva do saber através das intervenções que se
fazem nos meios mediáticos pelas mesmas figuras, pelos mesmos atores, pelos mesmos
intervenientes, cujas argumentações precisam ser tomadas com cuidado, questionadas
e expurgadas, estamos em direito de nos perguntar, ao repetir Bourdieu (1996), o
que eles estão fazendo lá, se eles estão lá para dizer alguma coisa, senão por
que eles estão lá, se o que eles vão dizer tem um valor científico. Ou seja,
será que todos aqueles que estão falando na TV são intelectuais? Deveríamos
aceitá-los como tais? Apesar de tudo, a partir de algumas constatações, que
veremos mais adiante, estamos convencidos de que no processo de formação, de
instituição e de estabelecimento da autoridade e notoriedade do intelectual, as
mídias desempenham um papel relevante. Trata-se de entender então se é o
intelectual que procura essa visibilidade midiática ou se é a mídia que vai
atrás dele para construir uma imagem dele.
Assim, neste trabalho pretendemos desenvolver quatro pontos. Num primeiro
momento, vamos analisar o significado do caso de Dreyfus lembrando,
sucintamente, o contexto histórico no qual esta noção nasceu. Enquanto, em
segundo lugar, abordaremos a ambiguidade da definição do conceito de
Intelectual no mundo contemporâneo, a terceira parte será consagrada a uma
compreensão sociológica do papel social dos Intelectuais, como grupo social
privilegiado, na sociedade mostrando a relação que existe entre
intelectualidade e ciências sociais. Por fim, tentaremos mostrar a existência
de vários tipos de intelectuais e o papel desempenhado pelas mídias no processo
de construção social dos Intelectuais, qualquer seja sua característica.
1. Um lembrete histórico: O significado do caso de Dreyfus na criação do
conceito de Intelectual
Apesar de não querermos
fazer uma historicidade do tema de Intelectual,
é claro que esta noção esteja acompanhada de uma longa historia[3]
e já tenha adquirido, nos séculos XVII e XVIII, através da figura dos filósofos,
dos sacerdotes, um peso considerável, mas ainda não ganhou tantas popularidade,
consideração e relevância e produziu tanta repercussão no mundo dialético, nos
meios científicos e midiáticos desde o século XIX até hoje. Falava-se, na Idade
Média, de clérigos enquanto tipo de “intelectuais”
ou homens de letras ou sábios para designar os potenciais detentores de um
saber sacralizante e sacerdotal[4].
É importante lembrar, ademais, que o tema surgiu em paralelo com alguns
fenômenos sociais importantes que marcaram o mundo moderno entre os quais
podemos sublinhar: separação radical entre Igreja e Estado; independência da
ciência do saber sagrado da religião; autonomia das ciências sociais e aparição
das liberdades individuais, em particular, as liberdades de pensamento, de
opinião e de expressão que, sendo frutos exclusivos da Revolução burguesa
contra a dominação eclesiástica, constituem os valores supremos e autênticos do
intelectual, quer dizer, o primeiro elemento que caracteriza o intelectual é
sua liberdade de expressão. Por outro lado, não podemos esquecer um outro momento
histórico bem especial, que marcou mais profunda e fundamentalmente o
surgimento do conceito de Intelectual: o caso de Dreyfus, a partir do qual esta
palavra começou a ganhar força, visibilidade e importância expandindo-se e
criando também conflitos políticos, guerras de opiniões, divergências e contradições
entre os diferentes grupos intelectuais na sociedade francesa na época.
Segundo Winock (1998) o caso Dreyfus permitiu descobrir a verdadeira
imagem antissemita e racista da França numa época atravessada por muitas crises
assim como uma viva consciência coletiva política que se agitou muito (WINOCK,
1998, p. 7-13). Leclerc (2005) e Charle (1990), por sua vez, sublinham a
aparição e a constituição de dois grupos de intelectuais antagônicos: os dreyfusards e os antidreyfusards. Os primeiros se reclamavam defensores dos valores
universais (como humanidade, liberdade e justiça) enquanto os segundos os de um
nacionalismo que acharam estar em perigo. Daí a oposição violenta entre intelectuais
universalistas e intelectuais nacionalistas (LECLERC, 2005; CHARLE, 1990). A
contribuição de Mohrt (1942) nos parece interessante na medida em que o autor
tenta descrever e denudar a natureza da intelligentsia
francesa no século XIX. Ela foi caracterizada pelos problemas internos (crises
econômicas) e externos (as guerras franco-alemães em 1870), ou seja, uma intelligentsia à imagem de uma sociedade
transtornada. Este retorno histórico para trás é necessário no sentido de que o
autor nós permite entender as diferentes categorias de intelectuais que a
França produziu desde o império até a república passando pela monarquia –
período mais triste e lamentável, segundo o autor, para os homens de letras (MOHRT,
1942). Poderíamos completar os argumentos deste autor pelo processo de
revolução e de expurgação levantado por D´Appollonia (1991), contra os
intelectuais franceses que prestaram sua competência e inteligência ao exercito
alemão ou ao serviço secreto alemão durante as guerras franco-alemães. Eles
ajudam a entender que a sociedade em si mesma é a verdadeira fonte de produção
dos intelectuais de vários tipos (D´APPOLLONIA, 1991). Em suma, o caso de
Dreyfus representa, por assim dizer, na historia contemporânea mundial em
geral, na dos intelectuais como homens críticos do sistema social, político e
econômico opressor em particular, o surgimento, a apreciação, a depreciação, a
avaliação, a reavaliação, o fortalecimento, o refortalecimento, a valorização e
a revalorização de uma noção que, após o processo de Dreyfus, não deveria
existir mais, a saber, os Intelectuais.
2. A
ambiguidade da definição do conceito de Intelectual
hoje
Segundo
Durkheim (1898), o intelectualismo, imbricado a um certo individualismo, é o
direito que cada indivíduo tem de manifestar sua liberdade de pensamento e de
expressão, a liberdade suprema conquistada pelas sociedades modernas,
posicionando-se e expressando-se sobre um assunto que ele acha estar da sua
competência (DURKHEIM, 1898, p. 8). Em outras palavras, se ser intelectual
significa usufruir da inteligência para produzir obras culturais, artísticas e
científicas, isso não significa, no entanto, ser mestre ou domesticador da
inteligência em si. Então, do ponto de vista racional, a incompetência
intelectual é um não senso. Em notas de rodapé ele define o intelectual da
maneira seguinte:
L'intellectuel n'est pas celui
qui a le monopole de l'intelligence; il n'est pas de fonctions sociales où
l'intelligence ne soit nécessaire. Mais il en est où elle est, à la fois, le moyen
et la fin, l'instrument et le but; on y emploie l'intelligence à étendre
l'intelligence, c'est-à-dire à l'enrichir de connaissances, d'idées ou de
sensations nouvelles. Elle est donc le tout de ces professions
(art, science) et c'est pour exprimer cette particularité qu'on en est venu
tout naturellement à appeler intellectual l'homme qui s’y consacre (DURKHEIM, 1898, p. 3).
Portanto, contrariamente ao que pensa o senso comum, a inteligência não é propriedade exclusiva
de ninguém, não pode ser domesticada nem colonizada pelos intelectuais. É o bem
da humanidade. Ela só é um instrumento ao serviço de todo homem, e, os
intelectuais, em que lhes diz respeito, a usam a seus fins. Em resumo, ser
intelectual para Durkheim é comprovar a capacidade de usar esta inteligência e
colocá-la ao serviço da causa social. Como diz Leclerc (2004), o intelectual
solitário, isolado não existe, tem que pertencer a uma estrutura coletiva, ou
seja, a atividade intelectual implica o pertencimento a um corpo coletivo, que
ele chama os pares, tal corpo conferi
ao intelectual autoridade e notoriedade. Assim, podemos considerar, sem dúvida,
o intelectualismo como uma atividade cultural, científica, artística, política
e social.
Além disso, o conceito de Intelectual nos convida a levar
em conta três perspectivas: social, política e filosófica.
Se devermos considerar o surgimento dos intelectuais como um fenômeno
social, é importante entender o Intelectual como o produto do seu próprio meio sociocultural
atravessado por um conjunto de ideologias e de eventos históricos dentro da sua
classe e fora da sua classe, tais ideologias e eventos acabam de impactar sua
vida, quer dizer, o intelectual é, ao mesmo tempo, ator e agente dos fenômenos
sociais, políticos, econômicos e culturais que ocorrem no seu presente e perante
os quais ele não pode ficar indiferente. A partir do caso de Dreyfus, devemos ver
no intelectual, ao trabalhar com ideias e ideologias ganhando certa autonomia, um
interprete e analista do seu tempo e das crises múltiplas e diversas que
atravessa sua sociedade. Ou seja, ele é o testemunho de sua época que ele
descreve e pintura com destreza e fineza para ajudar as diferentes camadas
sociais a tomar consciência de si mesmas (WINOCK, 1996). Este comportamento faz
do intelectual alguém que busca mudar o mundo social no qual está vivendo. Esta
mudança social é possível se, e somente se ele tem consciência de si, da sua
função na sociedade, da sua situação de classe, compreende e consegue dominar o
universo social no qual ele está evoluindo, os fenômenos que caracterizam este
universo.
Eis o que vai levar à sua transformação em homem-contradição que se rebela contra o sistema cujo é produto e ao
qual ele prestou sua competência, inteligência e serviço durante muito tempo
com lealdade (SARTRE, 1994). Pois, o papel social do intelectual em si exige,
segundo Bourdieu, uma autonomia racional e um engajamento às causas universais.
Este engajamento implica um papel político sem que, no entanto, os intelectuais
se tornassem políticos (BOURDIEU apud NOVAES, 2006, p. 19-20). Esta autonomia
racional engendra, por conseguinte, uma ruptura com a classe dominante, tal
ruptura produz, segundo Sartre (1994), dois impactos principais na vida do
intelectual. Primeiro, o intelectual se torna um traidor para a classe
dominante e um suspeito às classes exploradas. Segundo, esta ruptura coloca o
intelectual numa certa situação de quase sem
classe, porque, em ambos os lados, as relações sociais são marcadas pela
desconfiança (SARTRE, 1994, p. 41-45). Na verdade, isso deve ser visto só como
uma aparência, uma imagem enganadora do intelectual, pois, de fato, ele
pertence a uma classe, sua classe é a pequena burguesia, uma nova classe surgida
a partir dos conflitos que ocorreram nas classes burguesias entre ele e o
dominante. Duas razões, segundo Löwy (1979), explicam esta pertença. Primeiro a
pequena burguesia é o lugar de predileção de recrutamento da maior parte da intelligentsia, segundo, os meios de
trabalhos e subsistência concedidos aos intelectuais provem diretamente da
classe pequeno-burguesa. Todavia, resume ele, podemos encontrar intelectuais em
qualquer camada social até a proletária (LÖWY, 1979, p. 1-2). A estas duas
razões podemos acrescentar uma terceira: a rejeição pela classe burguesa dos
intelectuais especialistas que ela mesmo formou, criou e construiu.
O homem-contradição significa,
em termos sartrianos, contradição que o intelectual tem com si mesmo, com as
ideologias da classe dominante que participou, grandiosa e imensamente, da sua
formação, e, por fim, contradições que estão lhe esperando nas classes
oprimidas das quais ele pretende defender os interesses contra a classe
opressora. Entre ser um universalista social pequeno-burguês, um técnico do
saber prático, um reprodutor das ideologias da burguesia – o estatuto social
que lhe é imposto pela sua profissão de especialista da classe dominante – e ser
um humanista de uma causa particularizante em referência a sua condição de
classe, um elemento da classe média, eis tudo o que defini a situação de homem-contradição que é o intelectual e
que explica perfeitamente também as dificuldades e os grandes dilemas nos quais
ele se encontra. Em outras palavras, a expressão de homem-contradição de Sartre deve ser entendida como uma
conseqüência da revolta que vem acontecendo na vida do intelectual pela tomada
de consciência das condições de vida das classes exploradas, porque o
intelectual não consegue estabelecer uma relação de causa a efeito entre os conhecimentos e valores teóricos
apreendidos e adquiridos nas escolas e universidades burguesas desde a infância
até a idade matura – como, por exemplo, igualdade e humanismo – com as
realidades sociais e econômicas práticas (SARTRE, 1994, p. 26-29). Nesse
sentido, Sartre sustenta:
Assim, o
intelectual é o homem que toma consciência de oposição, nele e na sociedade,
entre a pesquisa da verdade prática (com todas as normas que ele implica) e a
ideologia dominante (com seu sistema de valores tradicionais). Essa tomada de
consciência – ainda que, para ser real,
deva se fazer, no intelectual, desde o
início, no próprio nível de suas atividades profissionais e de sua função –
nada mais é que o desvelamento das condições fundamentais da sociedade, quer
dizer, dos conflitos de classe e, no seio da própria classe dominante, de um
conflito orgânico entre a verdade que ela reivindica para seu empreendimento e
os mitos, valores e tradições que ela mantêm e que quer transmitir às outras
classes para garantir sua hegemonia. Produto de sociedades despedaçadas, o
intelectual é sua testemunha porque interiorizou seu despedaçamento. É,
portanto, um produto histórico. Nesse sentido, nenhuma sociedade pode se
queixar de seus intelectuais sem acusar si mesma, pois ela só tem os que faz (Sartre,
ibid., p. 30-31).
Embora seja interessante para entender os dilemas dos intelectuais hoje,
o homem-contradição de Sartre é
problemático e ambíguo na medida em que, por exemplo, nos mostra que, ao mesmo
tempo, as contradições transformam o intelectual automaticamente em rebelde e
militante[5]
por ter abraçado a causa das condições de vida das classes trabalhadoras ele
continua conservando alguns privilégios adquiridos da classe dominante. Ou
seja, enquanto ele continua a fazer um trabalho técnico pelo qual recebe muitos
privilégios econômicos e sociais, ele se encontra, ao mesmo tempo, numa
obrigação de probidade intelectual de dizer a verdade denunciando este mesmo
sistema, sua crueldade e sua corrupção. Será que isso significa que a ruptura
não foi total ou definitiva, e, a autonomia racional não consolidada?
Com efeito, renuncia, revolta e rejeição transformam o técnico do saber
prático em um intelectual, não para a burguesia, para quem ele é ou um técnico
do saber prático ao seu serviço ou um rejeitado, mas para a classe oprimida que
elogiará sua coragem após perder os prestígios sociais e econômicos que a
burguesia lhe concedeu. No caso contrário, como ele não quer perder e prestígios
sociais e privilégios econômicos, então, ele se encontra compartilhado entre
dois seres contraditórios: cientista e intelectual; universalista e
particularista; militante e conservador etc. Não obstante, conservando esses
privilégios, ele pode ser considerado como um intelectual orgânico
diferentemente do outro tipo de intelectual que nasce das contradições e se
torna aquilo que se mete no que não é de
sua conta. Esta é a ambigüidade de entender o homem-contradição de Sartre.
Todavia, apesar de tudo, o mais importante a reter no homem-contradição de Sartre, é que antes
de se revoltar, ele é ainda um especialista de um saber prático ao serviço da
classe dominante, em outras palavras, um assalariado; a este titulo, ele é uma
força produtiva da superestrutura ideológica do sistema capitalista, que
trabalha com ideias, valores e conhecimentos para conseguir manter a hegemonia
social e política deste sistema (Barros, 1977, p. 7-8). Portanto, é a
contradição do intelectual com a classe dominante, as estruturas sociais e
superestruturas dos meios de produção que defini seu estatuto social e sua
função social, ou seja, sem contradição seria difícil falar da existência dos
intelectuais como categoria social enquanto tal.
Em segundo lugar, além de ser um fenômeno social, o aspecto político da
aparição dos intelectuais encontra sua eminência no caso de Dreyfus durante o
qual homens detentores de saberes, gozando de prestígios na sua comunidade,
abusaram da sua competência e celebridade para abraçar uma causa altamente
política que, aliás, não foi de sua conta e na qual eles não deveriam se meter.
Isso mostra que, desde então, o engajamento dos intelectuais às causas
universais é eminentemente político, dito de outra forma, a função social dos
intelectuais na sociedade não lhes permite escapar, ignorar ou fechar seus
olhos sobre as questões políticas. Isso traduz, por outro lado, além da
independência dos intelectuais, sua autonomia em relação ao sistema político
estabelecido, tal autonomia lhes conferiu uma autoridade de falar, de se
posicionar, de manifestar contra uma decisão arbitrária em nome dos valores
universais. Hoje, as sociedades contemporâneas conhecem muitos casos similares
ao de Dreyfus: pessoas e grupos de indivíduos, grupos de rebelião, grupos
conservadores que – ao estar criticando e denunciando ferozmente os abusos
políticos; as violações de direitos humanos; de liberdades individuais; de um
regime opressor, ditatorial e corrupto – se metem em assuntos fora do seu
alcance. Mas será que isso permite considerar, no mesmo contexto, essas pessoas
como intelectuais?
Na verdade, o caso de Dreyfus, apesar de se acentuar na figura de um
indivíduo, ressaltou a defesa pelos intelectuais dos valores universais, como,
por exemplo, o direito de todo homem a uma justiça equitativa e imparcial; criou
uma certa visibilidade mediática aos intelectuais como Zola[6],
mas, não criou autoridade e notoriedade. Autoridade e notoriedade são dois
valores que já foram para os literatos como Zola, romancistas como Clermenceau
um adquirido no seio da sociedade francesa graças as suas obras filosóficas, culturais
e artísticas e, é por causa dessas autoridade e notoriedade adquiridas que eles
eram capazes de se pronunciar, se posicionar livremente sobre o caso de Dreyfus,
ser ouvidos e levados a sério pelo mundo inteiro, que justificam, por fim, o “J´accuse” de Zola. O intelectual não é
qualquer pessoa, enquanto criador, produtor e manipulador de idéias e de
ideologias, ele funda sua própria autoridade, ele não obtém de ninguém um
mandato para falar. É o que acontece aos intelectuais pequeno-burgueses após
entrar em confrontação com a classe dominante para abraçar as causas das
classes trabalhadoras[7].
Existe uma distinção clara entre autoridade e notoriedade.
Os dois temas parecem sinônimos, de preferência, eles se completam e estão numa
relação de continuidade. Com efeito, autoridade consiste em uma habilidade e
capacidade intelectual de falar, de se posicionar, de discutir, de teorizar
sobre assuntos dentro da sua área de pesquisa, e na esperança de que suas
palavras têm um peso, uma relevância no mundo intelectual, podem ser elogiadas,
analisadas, criticadas e problematizadas pelo que Leclerc (2004) chama os pares, isto é, pelos outros
companheiros e amigos intelectuais que compõem a comunidade intelectual.
Autoridade significa que o intelectual, ao longo do tempo, adquiriu certos
conhecimentos e saberes acadêmicos, filosóficos, científicos que lhe conferem
inteligência, capacidade e racionalidade de defender seus pontos de vista.
Esta autoridade, malgrado seu caráter social, se constrói
e se forma na individualidade[8],
ou seja, é a partir de uma iniciativa individual que o intelectual apreende a
se tornar uma referência notória na matéria que estudou. Aí vem a notoriedade.
Ela se define como a marca de distinção, de prestígio, de honra e mesmo de
sublimação concedida pelos pares ao
intelectual como uma expressão de solidariedade social, como um símbolo de
recompensa pelos seus esforços e sacrifícios para se formar, construir,
fortalecer, aprimorar e conservar seu desempenho intelectual. Assim, podemos
considerar a autoridade como um ato autoreflexivo que vem da propriedade
iniciativa do intelectual, ou seja, ele se impõe à opinião pública e se cria lá
um espaço de prestígios, enquanto a notoriedade, sendo exógena, traduz o
respeito e aceitação coletiva dos pares. Autoridade e notoriedade, sendo uma
construção social, cultural e simbólica, são, em suma, a expressão do sucesso
social do intelectual; o fruto dos seus esforços individuais e o vector da sua
função social.
Por fim, o aspecto filosófico tende a nos levar a ver na figura dos
intelectuais de hoje uma continuação dos filósofos do século XVIII enquanto
seus netos e herdeiros. É difícil aceitar uma tal afirmação sem problematizar.
Com efeito, os filósofos, do século XVII até o século XIX, constituíram, na sua
época, uma espécie de clube de freqüentação intelecto-amigável
muito restrito e fechado. Mas, hoje, as figuras dos intelectuais são múltiplas,
eles não são mais uma espécie de seita (comunidade fechada onde tudo mundo se
conhece, cada um é conhecido pelos seus pares), eles podem ser encontrados nas
diferentes camadas sociais. Portanto, essa tendência já evoluiu bastante, porque
a imagem revolucionária e o estatuto de defensor dos interesses das classes
exploradas que os intelectuais têm hoje estão em perfeita contradição com as
características dos filósofos da Idade Media e das Luzes que trabalharam pelo
fortalecimento de uma classe dominante, a burguesia, cujos interesses eram em
oposição flagrante com os da Igreja e do resto da sociedade. Assim, esses
filósofos, como sustentam Gramsci (1978) e Sartre (1948, 1994), podem ser
considerados pura e simplesmente como intelectuais
orgânicos, ou seja, reprodutores, conservadores e caos de guardião de uma
ideologia dominante.
3. Intelectualidade
e ciências sociais: Para uma compreensão sociológica do papel social dos intelectuais
na sociedade
Nas ciências sociais, em particular, na sociologia, encontramos uma interpretação
bem particular – diferentemente das outras disciplinas científicas como, por
exemplo, a literatura e a filosofia – de explicar o papel, o lugar e a imagem do
intelectual na sociedade. É que os
intelectuais, como categoria social distinta, separada, mas inserida na
sociedade e em perfeita relação com as outras categorias sociais, constituem um
problema sociológico crucial a ser debatido e problematizado e um desafio para
as ciências sociais. Se quisermos partir do argumento segundo o qual o papel social
do intelectual na sociedade é estimular os outros a ter consciência da sua
situação como classe explorada e chamá-los a se revoltar contra essa opressão e
dominação do sistema capitalista burguês, este papel não pode ser cumprido sem
um engajamento, que está intimamente correlacionado com uma totalidade
histórica e uma consciência coletiva, quer dizer, do mesmo modo que as
contradições criam novo estatuto social, elas engendram também novos
engajamentos individuais e sociais. Ademais, como, de um lado, a literatura,
obra social por excelência, é imanente ao engajamento, literatura tem que ser engajada, nos diz Sartre (1948); do outro, os
literatos, artistas e filósofos do século XVIII constituem o tipo-ideal da
figura do intelectual, ou, o modelo autêntico da alta intelectualidade moderna,
então ser intelectual se assimila muito bem a se engajar na vida social,
política, cultural.
Mas, engajamento ao que ou a quem? A uma causa – seja de maneira individual
ou coletiva, privada ou pública, comunitária ou social – que pertence à
humanidade em geral, a uma coletividade em particular. Por isso, no caso de uma
causa defendida em prol de um grupo, de uma classe dominante, estamos em face
de intelectuais orgânicos no sentido
gramsciano ou de técnicos do saber prático no sentido sartriano (GRAMSCI, 1978,
p. 3-23, SARTRE, 1994, p. 13-31). Pelo contrário, o verdadeiro caso do
intelectual é universal, mundial, transnacional, internacional além de ser
nacional, social e coletivo, ou seja, ele se funda num humanismo, socialismo e universalismo
mundializante e particularizante: esta é a causa a ser abraçada pelos “verdadeiros intelectuais”. Utilizamos o
adjetivo “verdadeiro” na conceptualização sartriana para designar aqueles
intelectuais que acreditam num universalismo humanitário como projeto do porvir prático do homem e não
como o deveria ser das sociedades
sustentado pelo que ele chama os falsos
intelectuais que pregam um universalismo e um humanismo cego. Pela sociologia, que se interessa por
esta categoria social chamada intelectuais,
toda causa é no início social e coletiva na medida em que ela se escreve numa
historia total e global e o envolvimento do intelectual nela é contagioso e
muito suscetível de influenciar as outras camadas sociais. E, no quadro das lutas de classes, os
projetores são sempre iluminados sobre os intelectuais que têm um papel
histórico nelas. Assim, as outras camadas sociais tendem a tomá-los, como disse
Löwy (1979), por revolucionários e seu modelo social de sucesso. Ou seja, do
ponto de vista sociológico, é irracional se engajar a sua própria causa
ignorando as relações e interações sociais e veja-se no engajamento uma
posicionamento puramente individualista e pessoal.
Além disso, os intelectuais se engajam às causas já existentes na
sociedade, que marcam a vida social e que a coletividade expressa, então, eles
não inventam as realidades sociais. Por isso, precisamos distinguir as
realidades sociais propriamente ditas, vistas como vendo do exterior – centro
da produção dos fatos sociais reais – e as realidades sociais falsificadas e
formatadas em prol e à imagem de um sistema dominante cujo o intelectual é mesmo
comissário retomando exatamente a expressão empregada por Gramsci dizendo: “Os intelectuais são os “comissários” do
grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e
do governo político”(GRAMSCI, 1978, p. 11). De fato, desde o caso de
Dreyfus[9], o
intelectual sempre projeta a imagem de alguém que está defendendo,
reivindicando, apoiando, abraçando uma causa histórica e social que não é de sua conta.
Esta causa não precisa ser identificada a um qualquer grupo social exclusivo,
porque já transcende esses grupo para revestir um nível de universalismo e humanismo
planetário, todavia, antes de tudo, ela é, em primeiro lugar, societal[10] e
se escreve num campo social bem peculiar. Isto é, ações sociais revolucionárias
de caráter universal em prol da humanidade no objetivo de transformar as
condições sociais e levar as camadas sociais exploradas a serem mestres do seu
destino. É com valores, ideias e ideologias, reconhecidos como universais,
transnacionais e internacionais, propriedade de toda sociedade e de todo ser
humano, que o intelectual se apresenta como militante e revolucionário contra o
sistema opressor para se libertar si mesmo e libertar seus companheiros. Mas, o
combate dele contra as ideologias dominantes se faz utilizando ideologias, ou
seja, o intelectual se serve das próprias armas da classe dominante, a saber, suas
ideias, para combater esta classe com outras ideologias.
A partir daí, estamos caindo numa guerra de ideologias. Não com novas
ideologias de origem das classes médias que, ele, o intelectual luta, porque
estas não têm condição material, psicológica e social suficiente para produzir
ideologias e, também, segundo sua situação atual, sua prioridade imediata não é
ideologias, mas libertação. Mas, são ideologias que pertencem à consciência
coletiva, que vêm dela, ou seja, são as condições sociais e econômicas precárias,
as realidades sociais reais que os inspiram os intelectuais, os levam a se
revoltar contra as ideologias dominantes e que fazem deles apóstolos da verdade. Pois, lembre-se, os intelectuais não caem do
céu, não são extraterrestres, são membros da sociedade; observadores,
participantes e, às vezes, instigadores das crises sociais, políticas,
culturais e econômicas; analistas dos fenômenos sociais; seres humanos como os
que sofrem as explorações da burguesia; portanto, afetados e atravessados pela mesma
consciência coletiva, mas, eles têm um papel diferente por causa do seu estatuto
social e por ser uma categoria social privilegiada.
Se partirmos então do pressuposto de que o engajamento significa abraçar
uma causa eminentemente política e social a nível nacional, transnacional,
internacional, mundial ou universal, é importante entender, primeiro, que a
intelectualização dos intelectuais passa por um processo histórico muito
complexo a tal ponto que podemos dizer que se trata de uma outra tipologia de
socialização que mereceria uma abordagem metodológica e epistemológica peculiar;
segundo, ao se engajar a uma tal causa, o intelectual precisa estar consciente de
que ele está, ao mesmo tempo, fazendo do intelectualismo uma vocação[11] e
construindo uma outra imagem social, cultural e simbólica na escala tanto
nacional como internacional.
4. Existem
Intelectuais e Intelectuais: O papel das mídias na construção social dos
intelectuais
Sem a intenção de retomar a classificação discriminatória
entre falsos intelectuais e verdadeiros
intelectuais[12],
devemos distinguir hoje intelectuais e intelectuais. A partir da leitura das críticas
de Bourdieu (1996), de Leclerc (2005) e de Moreira (2001) a respeito dos
Intelectuais, podemos ressaltar, pelo menos, três tipos de intelectuais que as
sociedades pós-modernas estão construindo e valorizando hoje.
O primeiro tipo reagrupa os intelectuais que fazem da
pesquisa, da ciência, da arte, das teorias suas principais armas, uma vocação e
um engajamento ético mesmo no sentido weberiano, e que, através da sua
pesquisa, do seu estudo e da sua teoria, eles conseguem se identificar a uma
verdadeira causa social, universal e humanitária. Estes são minoritários e
freqüentam raramente os meios da imprensa. Ao segundo tipo pertencem os
intelectuais destinados a fazer barulhos nas mídias, que se convidam
frequentemente lá, que fazem desse espaço seu lugar de predileção para discutir
mediocremente as teorias, aqueles que Bourdieu critica severamente no seu livro[13].
Por fim, existe um terceiro tipo que podemos chamar de intelectuais jornalistas que, às vezes, sem produção intelectual,
artística, literária e cientifica relevante, são produtos da imprensa.
Estes dois últimos tipos de intelectuais, na visibilidade
dos quais as mídias desempenham um papel relevante, são muito perigosos para
inteligência humana, constituem um grande desafio para as ciências sociais, por
que eles detêm nas mãos uma arma de comunicação poderosa que atinge as massas.
Precisamos tomar muito cuidado com as suas falas e intervenções que são de tipo
de espectacularização televisiva vazia de conteúdo distinguindo homens de
ciência e charlatões.
Falando do papel das mídias, que é fundamental na popularidade
dos intelectuais – bons ou ruins – é importante sublinhar que os meios de
comunicação de massa consistem em um certo repertório – empregando um conceito muito caro ao
Tilly[14] –
para que o engajamento do intelectual seja
efetivo, eficaz, real e forte, ou seja, um espaço a partir do qual sua voz
seria mais ouvida. Com efeito, o conceito de repertório nasce a partir das análises de Tilly dos movimentos
sociais e pode ser definido como um conjunto de estratégias utilizadas por
estes para não somente valorizar suas ações políticas, mas sobretudo, para
criar seu próprio lugar de privilégio no espaço de decisão (TILLY, 2008, p.
87-121). Por isso, achamos interessante retomar aqui esse conceito para
entender que as mídias representam um espaço social poderoso que oferece
visibilidade e muita possibilidade de propaganda aos intelectuais para estes
possam defender as ideias e os valores da classe dominante; poder construir, às
vezes, um certo autoritarismo intelectual e não autoridade intelectual; obter
certa legitimidade junto de uma comunidade. Aí surgem duas perguntas: o que
leva ou faz pensar a um indivíduo, na sua pretensão de ser
"intelectual" que, ao falar nas mídias, ele está se engajando a uma
causa universal e seu engajamento engajaria os outros? É a mídia que vai atrás
do intelectual ou é este que procura as mídias para se construir uma imagem e visibilidade
mediáticas?
A primeira pergunta poder ser respondida repetindo que é a
tarefa que o indivíduo executa no seu grupo social que vai determinar sua
função social enquanto intelectual, em outras palavras, tudo mundo pode ser intelectual, todavia, a função social do
intelectual não cabe a tudo mundo (GRAMSCI, 1978, p. 7, op. cit; BARROS,
1977, op. cit.). A função por excelência do intelectual, repete Sartre é a
contradição: ele nasce, evolui e permanece nas contradições, ele vive das e
pelas contradições, toda sua vida é contradição por que, não somente, a
sociedade cujo é produto está cheia de contradições, como também os valores com
os quais ele trabalha, como, por exemplo, liberdade, igualdade, humanidade
etc., são feitos de contradições (SARTRE, 1994, op. cit.).
É claro que o intelectual não pertence à classe dominante,
a burguesia não lhe reconhece o estatuto de membro desta classe, ele está ao
serviço dela por certo momento, portanto, ele é também um explorado como a
classe trabalhadora, ele é, ao mesmo título desta última classe, uma força
produtiva (BARROS, op. cit; CASANOVA, METZGER, PREVOST, 1970). Sendo oriundo da
classe média, ele não é mais membro desta classe uma vez que prestou sua
competência à classe dominante e opressora trabalhando contra sua própria
classe de origem. A classe média, classe dominada e oprimida, nos dizem Sartre
(1994), Gramsci (1978) e Charle (1990), não tem condição material suficiente de
criar seus próprios intelectuais, assim, os intelectuais são essencial e
exclusivamente produtos da classe dominante e membros de uma pequena burguesia.
Por que as classes médias não podem produzir seus próprios intelectuais?
Porque, primeiro, a formação dos intelectuais depende das
universidades e grandes centros de pesquisa e escolas de especialização. Essas
estruturas intelectuais e burocráticas são controladas pela classe dominante,
seu funcionamento depende do orçamento do Estado que, ele mesmo, é um aparato
de repressão nas mãos das grandes empresas burguesas. As universidades hoje
constituem, em segundo lugar, a fonte principal da produção de forças de
trabalho com alta qualificação, seja manual ou intelectual. Assim, os intelectuais
são recrutados dentro desta estrutura e alguns dentre eles se tornam
recrutadores da mão de obra barata ou qualificada nas grandes empresas
burguesas.
Isso não significa, de jeito nenhum, que os intelectuais
não podem defender os interesses da classe dominada e oprimida. Como já vimos,
ao contrário, é a tarefa, embora muito difícil e arriscada, que caracteriza os
intelectuais qualificados de esquerdistas
no sentido de que a tendência de hoje é que todos os intelectuais seriam
marxistas e revolucionários e vice versa. Eles defendem de fato as classes
médias, mas não pertencem a elas. Eles podem ser oriundos das classes
operárias, como também existe uma fraca minoria na burguesia, porém, não
permanecem membros daquelas classes. Portanto, nas duas extremidades, o
estatuto social do intelectual é contestado e contestável, frágil a sustentar e
a definir.
A segunda questão é mais difícil e complexa a responder
porque, como diz o proverbio, em ambos os
casos o mal é infinito. Com efeito, os grandes intelectuais, como Bourdieu,
por exemplo, que adquirem uma autoridade e notoriedade no campo intelectual,
vão raramente às mídias hoje[15],
e, quando foram, antes de aceitar o convite, eles impõem certas condições. Todavia,
eles representam um capital simbólico para essas mídias que eles frequentam,
pois, sua presença é suscetível de aumentar os tempos de escuta correlacionados
efetivamente a um crescimento de números de telespectadores e/ou auditores.
Assim, são as mídias que beneficiam e aproveitam da personalidade, autoridade, notoriedade
de quem está falando, pois, não é qualquer pessoa.
Num outro sentido, depende também da reputação e do peso
daquela mídia no campo midiático e jornalístico internacional. Por exemplo,
intervir em RFI (Radio France Internacional) não é qualquer coisa por um
intelectual, é uma honra e um grande privilégio, ou seja, os jornalistas da RFI
não vão, com certeza, convidar qualquer pessoa para vir falar de qualquer
maneira ou de qualquer coisa. Portanto, o intelectual beneficia de uma grande
visibilidade e aproveita de uma publicidade para seu novo livro que acabou de
sair. É claro e lógico que isso acontece, mas é uma armadilha para os
intelectuais, porque Bourdieu fala das violências simbólicas e do tempo
restrito e limitado reservado ao desenvolvimento dos raciocínios. Pois,
escrever um livro não significa ser intelectual. Vimos que um intelectual,
digno deste nome, tem uma função altamente social na sociedade que podemos resumir
à de ser um modelo social de luta, de resistência e de sucesso, uma inspiração
de mudança social e uma fonte ideológica de esperança[16]
para as classes exploradas que têm dificuldade em acreditar na sinceridade da
sua revolta contra a classe opressora enquanto permanece um pequeno-burguês. Na
verdade, a expressão de falso ou
verdadeiro intelectual não existe em fato, só existe o intelectual como
artesão, criador e manipulador de ideias e ideologias lembrando que o conceito
é polissêmico, complexo, e, às vezes, contraditório.
Apesar de tudo, um fato é certo, é que, de um lado, as
mídias representam o repertório necessário, apto e eficaz ao intelectual, elas
são capazes de nos construir e nos impor um outro tipo de intelectual diferente
daquele que nos conhecemos nos séculos XVIII e XIX, de lhe garantir uma
midiatização, internacionalização e mundialização das suas falas[17].
Do outro lado, elas representam o lugar de predileção de treinamento e de
desenvolvimento da intelectualidade contemporânea e desempenham um papel
incontestável e enriquecedor na construção social, cultural e simbólica da
imagem dos intelectuais a tal ponto que estamos tentados a dizer que se os
melhores intelectuais do século XXI não seriam os jornalistas ou os que
frequentam mais os meios de comunicação.
Considerações gerais
Em resumo, se o título de intelectual não pode ser recusado, primeiro, aos técnicos do saber
prático ou especialistas que estão trabalhando, como diz Barros (1977), com
ideias, valores e conhecimentos para manter a hegemonia social da classe
dominante, porque, como os outros intelectuais das causas universais e
humanitárias, eles estão executando também um trabalho científico, artístico e
cultural, segundo, a alguns jornalistas que se tornam cada vez mais vetores e
condutores da opinião pública, a imagem que nos é oferecida hoje do intelectual
é que ele é um personagem de difícil definição, híbrido, controverso, com
múltiplas identidades e personalidades, com várias facetas e posições, um
personagem em constante mutação que cria mais problemas para a teoria
sociológica do que resolve, por fim, não podemos dizer mais hoje que ele
pertence a tal camada social e verificar a universalidade as causas que ele
abraça.
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sociedade de classe. Porto Alegre: Movimento, 1977.
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*
Artigo publicado em 5 de dezembro de 2015.
**
Doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail de
contato: jeandefabien1982@yahoo.fr.
[1] Ver Michel Winock. L´affaire Dreyfus. Paris: Seuil,
1998.
Idem. Le siècle
des Intellectuels. Paris: Seuil, 1997.
[2] A expressão é de nosso grifo a partir da
nossa compreensão das críticas de Pierre Bourdieu a respeito do lugar dos
intelectuais na mídia e, também, dos comentários de Antônio Flavio Moreira e de
outros autores. Ver: Pierre Bourdieu. Sur
la télévision suivi de l´emprise du journalisme. Paris: Raisons d´agir,
1996; Antônio Flavio Moreira et al (Org.). Para
quem pesquisamos? Para quem escrevemos?:O impasse dos intelectuais. São
Paulo: Cortez, 2001, p. 51-64.
[3]
Louis Boudin. Os Intelectuais.
Lisboa: Acadia, 1971, p. 7-19.
[4]
Jean-Paul Sartre. Em defesa dos
intelectuais. Tradução de Sergio Goes de Paula. São Paulo: Ática, 1994.
[5] Isso quer dizer que a um certo momento da
sua vida, o intelectual toma consciência das condições desumanizantes de
exploração social da classe operária, classe oprimida e explorada, pela
burguesia capitalista e das ilusões de igualdade social e de integração social em
que esta classe dominante o fizeram acreditar. Ele vai lutar então ao lado das
classes trabalhadoras pela sua liberação e pelo aprimoramento das suas
condições de vida, porque está convencido que ela é a única classe que seja
realmente revolucionária. Ver Antoine Casanova; Claude Prevost; Joë Metzger. Les Intellectuels et les luttes de classes.
Paris: Sociales, 1970; Jefferson Barros. Função
dos intelectuais numa sociedade de classe. Porto Alegre: Movimento, 1977.
[6] Ver Winock, 1997, p. 18-26.
[7]
Sartre, op. cit. 1994, p. 44-45.
[8] Falando da individualidade, é
verdade que o intelectual pertence a um grupo social, porém, sua atividade
intelectual releva e está sempre acompanhado de um alto individualismo. Ou
seja, se consideramos a visibilidade e a celebridade das quais o intelectual
goza, é fácil perceber que se trata sempre do fruto de um esforço individual a
partir de uma causa social e coletiva abraçada da sua escolha. Isso significa
que o social e o individual constituem as duas dimensões mais altas da obra do
intelectual e são intimamente interligadas. Não tem como separá-las (DURKHEIM,
1898).
[9]O caso Dreyfus não ficou preocupante só para
os intelectuais laicos, os intelectuais cristãos, em particular, os
protestantes – se podemos chamar assim aqueles que se revoltaram de alguns
princípios dogmáticos da Igreja –, não somente tomaram posição firme durante o
caso Dreyfus, exprimiram sua indignação, mas sobretudo, tentaram – como todo
intelectual consciente de seu tempo e dos problemas da sua sociedade – de
entender a sociedade na qual estão vivendo, as realidades sociais,culturais,
econômicas e políticas nas quais estão inseridos, as dos anos 20, propor
algumas soluções. Apesar de serem ignorados ou esquecidos durante a Revolução,
os intelectuais cristãos, e mais tarde os católicos liberais, desempenharam um
papel importante na compreensão do mundo social dos anos 20 e 30. Ver Pierre Colin. Intellectuels chrétiens et esprit des
années 20. Paris: Cerf, 1997, p. 51-82; 211-233.
[10] O caso de Dreyfus foi em primeiro societal,
transtornando todo o sistema social e político, todos os aparelhos jurídico,
judiciário e militar franceses, antes de alcançar um nível mundial graças ao
papel das mídias.
[11] Hoje, o engajamento intelectual se torna
cada vez mais uma espécie de círculo vicioso, uma contaminação social, um
sacerdócio. A medida em que o indivíduo se inserir nele, será muito difícil
para ele de sair de lá. É realmente uma vocação, como diz Weber. Ver Max Weber.
Ciência como vocação. Lisboa:
Tribuna da história, 2005.
[12] Ver Sartre, op. cit. 1994, p. 38-53 sobre a
comparação entre intelectuais verdadeiros e intelectuais falsos.
[13] Ver Pierre Bourdieu, op. cit. 1996.
[14]
Charles Tilly; Sidney Tarrow. Politique
(s) du conflit. Paris: Presses de
Sciences Po, 2008, p. 87-121.
____. Contentious politics. London: Paradigm,
2007.
Charles Tilly.
Regimes and repertoires. Chicago:
University of Chicago Press, 2006.
[15]
As razões pelas quais devemos tomar este cuidado são bem tratadas pelo
sociólogo francês. Ver Bourdieu, 1996, op. cit.; idem, 1992, p. 116-149.
[16] Para Gramsci, os intelectuais rurais, apesar
de terem sido objetos de contradições dentro das classes camponeses, – estes os
amavam como modelo de sucesso social ao mesmo tempo invejavam sua posição
social, – desempenharam perfeitamente bem esse papel de modelo social e de
força de inspiração para os filhos dos camponeses que, sempre, sonharam de ver
seus filhos se tornarem, por exemplo, um grande padre (Gramsci, op. cit. 1978,
p. 13).
[17]
Ver Leclerc, op. cit. 2004, p. 83-104.
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