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dimanche 29 octobre 2017

DA VIOLÊNCIA LIBERTADORA A OUTRAS VIOLÊNCIAS: SOCIOLOGIA HISTÓRICA DO HAITI

DA VIOLÊNCIA LIBERTADORA A OUTRAS VIOLÊNCIAS: SOCIOLOGIA HISTÓRICA DO HAITI

Resumo

Amiúde as pessoas se perguntam se o ser humano nasce violento ou se ele o se torna? Ou, será que ser violento é normal? Devemos entender, primeiro, que ser violento é um estado latente, segundo, uma escolha que as circunstâncias sociais impõem e, terceiro, um meio para chegar a um fim. Não se trata de normal ou de anormal, pois, a história da humanidade nos mostrou que a violência se inscreve numa dinâmica vingadora como passagem das opressões à libertação. Nesse sentido, ela pertence aos fatos sociais na medida em que a sociedade não pode se separar dela. A revolta do escravo oprimido é um exemplo típico e demonstrativo desta violência libertadora. O objetivo do artigo é discutir, a partir de uma compreensão sociológica da violênciao aspecto libertador da violência tomando formação histórica da sociedade haitiana como exemplo na perspectiva de tentar mostrar que se ela não é um fim em si, mas um meio que deve obedecer as suas regras naturais e sociais cujo uso errado e irracional pode custar um preço caro

Palavras-chave: Violência. Liberdade. História

Abstract

     Often people wonder if the human being is born violent or if he becomes violent? Or, is being violent is normal? We must first understand that being violent is a latent state, second, a choice that social circumstances impose, and third, a means to an end. It is not normal or abnormal, because the history of humanity has shown us that violence is inscribed in an avenging dynamic as a passage from oppression to liberation. In this sense, it belongs to social facts insofar as society can not separate itself from it. The revolt of the oppressed slave is a typical and demonstrative example of this liberating violence. The aim of this article is to discuss, from the sociohistorical formation of Haitian society, the liberating aspect of violence in the perspective of trying to show that it is not an end in itself, but a medium that may not correspond to other realities.

Keywords: Violence. Liberty. Hsitory.

Introdução 

        É indiscutível que Haiti tenha uma história fascinante de revolução social e política marcada tanto por momentos tristes e gloriosos quanto por conflitos e violências intestinos, na qual se entremeiam violência e escravidão, fatos sociais inseparáveis. Tudo começou no século XV quando o mundo estivesse assistindo na cumplicidade e consternação a exterminação maciça e sistemática de três milhões[1] de Índios na parte oriental da ilha do Ayiti. A ínfima quantidade que sobreviveu deste genocídio – não menos do que 2000 – se refugiou nas montanhas. Lá eles morreram resistindo (NAU, 1854, p. 200-217). Era o triunfo da barbárie sobre a humanidade. Com efeito, da resistência indiana até a proclamação da independência nacional em 1804 passando, com certeza, por todas as formas de luta possível: suicídio coletivo[2], revolta geral, quilombola, rebeliões sucessivas, lutas clandestinas, Haiti permanece a terra da melhor lição de resistência, de esperança e de liberdade, onde se entrecruzam duas raças humanas (africanos e europeus) em conflitos, mas condenadas a partilhar uma história ancorada de violências, de lutas, de crimes, mas também de glória e de heroísmo.

Os escravos africanos, ao substituírem os Índios, demonstraram que tinham capacidades físicas, humanas e materiais para levar uma luta violenta de dois séculos e meio pela liberdade, pelo direito e pela dignidade humana. Uma violência libertadora nasce num momento crucial em que esta raça enérgica, incansável e inesgotável, que nunca se deixou dizimada pela escravidão apesar de ser feroz e mortífera, se convenceu da sua força física e quantitativa de lutar (NAU, op. cit. p. 26-27). Toda forma de violência era necessária para sair desta opressão escravagista. A logica da colônia quer que a liberdade triunfe da violência e dos conflitos. Máquina de sangue, a escravidão criou no escravo um ser violento. Nesse sentido, Madiou declarou:

Les colons, les capitaines-généraux Leclerc et Rochambeau avaient exercé tant de cruautés sur les indigènes, que ceux-ci se faisaient, pour ainsi dire, une vertu de rendre aux Français crime pour crime. Ils étaient devenus aussi féroces que leurs persécuteurs. Peut-on s´étonner des vengeances exercées par celui que l´esclavage a rendu cruel? Mais quant au général Rochambeau, il appartenait à un peuple vieilli dans la civilisation[3] (MADIOU, 1989, p. 129).

É o significado da violência libertadora e emancipadora pouco tratada na problemática das violências sociais. O mérito cabe, no entanto, a Frantz Fanon (1961) por chamar atenção do mundo sobre o fato de que a violência do oprimido é libertadora e não é nada que uma resposta proporcional à violência do opressor. Aqui não se trata da dimensão devastadora e destruidora da violência nem da sua apologia, mas do seu aspecto revolucionário e transformador. Duas palavras resumem então as cenas de violência e de conflitos na vida social dos escravos africanos na colônia de Santo Domingo: opressão e libertação, ambas as situações são impregnadas de contradição, de rivalidade e de conflito de interesse ou de classe. Tanto na opressão como no processo de libertação a violência é absoluta e impiedosa. Na colônia de Santo Domingo violência colonial e violência libertadora andavam junto.

Nesse contexto histórico, a violência colonial era feroz, mas jamais conseguiu acabar com o otimismo dos escravos. Em resposta a esta violência, eles começaram a organizar, clandestinamente, suas lutas. Pela recusa da metrópole de negociar e pela sua vontade de continuar mantendo a escravidão, as guerras começaram a transformar a sociedade colonial em campo de batalha interminável. A política colonial de não dialogar era uma causa fundamental da amplificação e da multiplicação das violências dos escravos, e era também um caminho irreversível pela sua libertação. De fato, as guerras revolucionárias ocorreram num contexto decisivo. De um lado, o exército colonial se enfraqueceu tanto em matéria de quantidade dos soldados cujo estado de saúde era caótico quanto em matéria de munições, um número incalculável de escravos aderiram às lutas revolucionárias pela liberdade, do outro. Esta liberdade adquirida nas guerras precisará, logo depois, ser consolidada e protegida contra os conflitos políticos e violências sociais  internos. 

Assim, ao refletir em torno da problemática da violência libertadora, o artigo objetiva mostrar que a transição da violência libertadora para outras formas de violência de maneira absolutamente errada e irracional pode ter um preço caro. A partir daí, vamos então discutir como a violência libertadora abriu a porta para o Haiti poder sentar-se dentre os países livres e independentes, ressaltar a sociedade querida após esta etapa, sublinhar o sentido próprio da violência libertadora, mostrar a dimensão da herança de violência pela má exploração da violência libertadora, e, por fim, ver se o caso de Cité Soleil pode ser considerado como um protótipo desta situação.

1. Uma violência libertadora comprometida que colocou Haiti nos conselhos das nações

Esta saída inevitável desses séculos de violência colonial constitui uma etapa importante na defesa dos Direitos Humanos, da justiça social, da igualdade entre as raças, da soberania e da valorização dos valores sociais dos povos. Era também crucial para transcender e motivar espiritualmente outros povos. Quem neste mundo pode esquecer o apoio desta nação negra aos povos latino-americanos? Quem não sabe que sua libertação era contaminadora e inspiradora para os povos oprimidos do mundo inteiro? Desde a aurora, a história haitiana se inscreve numa dinâmica de violência e de conflitos sem início sem fim. Se na colônia ela era um instrumento de libertação, de emancipação e de transformação, ela se tornou o principal obstáculo da nova nação independente em 1804, que nasceu, certo, com grandes dilemas econômicos, diplomáticos, políticos e sociais, mas o pior era os conflitos e as rivalidades intrínsecos causados por fortes interesses particulares.

A defesa dos interesses pessoais em detrimento dos interesses coletivos é, infelizmente, uma herança da sociedade colonial que os novos governantes haitianos abraçaram. Com efeito, durante o período opressivo, os brancos e os libertos eram os principais grupos sociais rivais na colônia. Eles se entendem raramente, só, por exemplo, quando for preciso conspirar contra os escravos. É que seus interesses eram divergentes. Enquanto os brancos querem continuar no controle da colônia embora ausentes, os libertos reivindicam sua igualdade com eles e seu direito de gozar os mesmos privilégios que eles. Nesta conjuntura, os escravos, as principais vítimas desta situação, não podiam se organizar para pensar seu próprio modelo de sociedade, a sociedade colonial em si já era muito desigual, discriminadora, opaca, violenta e conflituosa. A sociedade deixada pelos cólons ingleses, espanhóis e franceses de Santo Domingo cujas violências eram insuportáveis demais porque nasceram num contexto de conflitos mundiais pela hegemonia racista europeia, era sua única referência.

Considerando que quando, a partir do século XVII, os Franceses ocuparam a parte ocidental da ilha – a atual República do Haiti – as rivalidades pelo comércio internacional entre os diversos países europeus já eram numa fase muito avançada, a revolução haitiana então não é isolada deste contexto internacional. Ela não é uma parte da história mundial francesa, mas a história mundial de uma nação negra que ia redefinir o mapa do mundo e o conselho das nações. Tanto os conflitos e as violências que afligiram a França quanto as revoltas dos escravos, tudo isso constitui um catalizador para que as guerras independentistas e libertadoras nas colônias possam se amplificar ganhando força e colocando a metrópole numa posição delicada. É claro que os escravos tenham aproveitado dos movimentos sociais, políticos e intelectuais – as Luzes – que estavam acontecendo na Europa para compelir a França a proclamar a liberdade para todos. A vaga incessante de proclamação da liberdade até, em 4 de fevereiro de 1794, a abolição geral da escravidão nas colônias francesas resulta, segundo Vertus Saint-Louis (2008), da pressão exercida pelas insurreições dos escravos num contexto de guerras civis intestinas e de rivalidades internacionais pelo comércio do mundo.

La colonie française de Saint-Domingue, partie occidentale de l´île d´Haïti, nous a paru insérée dans un réseau International de conflits entre les grandes puissances d´Europe, rivalisant pour la domination du commerce de la planète et de l´exploitation de ses ressources humaines et matérielles. Nous avons associé l´avènement de la liberté de 1794 dans la colonie de Saint-Domingue au mouvement des Lumières de l´Europe, aux commotions sociales et politiques qui secouent la France depuis 1789, et aux guerres de la révolution française qui éclatent en 1792 et 1793[4] (SAINT-LOUIS, 2008, p. 3).

Assim, as lutas revolucionárias e as violências libertadoras permitiram ao Haiti não somente de ser identificado, triunfalmente, dentre os povos livres e independentes, mas também abriram o caminhou da rebelião pela busca da liberdade e da dignidade para os outros povos. Era um combate em toda sua crueza entre violência colonial e violência libertadora, entre racismo, colonialismo e escravagismo mais cruéis das potências colonizadoras europeias e humanismo. Os escravos africanos ao vencerem, em 1803, França, Inglaterra e Espanha, dotaram este país de um certidão de nascimento irrefutável. Esta vitória foi semelhante ao som de uma música que atingiu todas as orelhas da terra ao mesmo tempo. Assim, as lutas haitianas pela justiça social, pela liberdade e pelo respeito do direito e da dignidade do ser humano se inscrevem doravante na história universal de uma sociedade livre, igualitária e democrática, a querida pelo líder da revolução.

2. A sociedade querida

Uma sociedade livre, igualitária, totalmente liberada de escravos, de explorados, de opressão, de servidão, enfim, uma sociedade justa em que tudo mundo possa gozar do fruto da independência, em que tudo mundo possa ter a igual chance de ter sucesso social. Mas, era um ideal levando em conta todas as fragilidades da sociedade pós-colonial que, finalmente, era, por ensaio e erro, uma continuação e uma reprodução típica da sociedade colonial. Com efeito, na sociedade independente as rivalidades radicais brancos e libertos foram substituídas pelos conflitos de interesses entre os principais heróis das guerras libertadoras que, em detrimento do resto da população, queriam confiscar todos os recursos materiais e naturais existentes. A luta de classe e a discriminação pela cor da pele e pela raça jamais foram tão cruéis.

Com uma população quase 100 % analfabeta, com um minúsculo grupo de intelectuais determinados, formar uma nação, construir uma sociedade até criar um ideal político na base do qual nascerão os grandes projetos sociais, econômicos e políticos, era a tarefa mais difícil. Isso se tornava ainda mais difícil num clima de violência, de conflitos internos, de ameaças externas (reais ou imaginárias) que transformam o país em uma espécie de obsessão. Ora, as principais ameaças e os maiores obstáculos ao desenvolvimento do país eram mais interiores ao próprio sistema social e político do que exteriores. Como lutar contra as forças exteriores sem estar em harmonia, em união e em unidade com as forças interiores? Um reino dividido pode subsistir? Como pretende-se mudar o mundo na discórdia e na divisão? Foi aquilo que os dirigentes haitianos não podiam compreender.

Então, por causa dos conflitos sociais e políticos internos e dos interesses individuais, a gestão da independência era difícil e tornou a violência libertadora uma contaminação pelo avanço da sociedade. Além deste tipo de violência, no Haiti livre e independente encontramos outros tipos de violência e de conflito variados, descontrolados e irresolvidos, que comprometeram a construção de uma nova equipe socialista governamental cujo processo foi, infelizmente, interrompido pelo assassinato brutal do líder principal, Jean-Jacques Dessalines, tal assassinato agravou as rivalidades políticas infinitas. O problema da institucionalização dos conflitos internos criou uma forma violenta de combate cega. Este modelo de sociedade igualitária, socialista, justa e democrática querida nos primeiros dias que seguiram a independência permanece até agora um grande sonho.

3. O sentido da violência libertadora

Xavier sustenta que a violência pode tomar várias formas e, além disso, em toda sociedade ela pode, não somente, ser de tipos diversos, mas também responder a funções múltiplas (XAVIER, 2008). É o caso, de um lado, da escravidão, da ditadura e da guerra, as formas de violência mais frequentes do mundo moderno e que têm por função a destruição da humanidade. Do outro lado, temos a violência simbólica que domina as sociedades contemporâneas de hoje, sua função seria a desvalorização e o desconhecimento do ser humano. A escravidão e a ditadura resumem perfeitamente a história social e política de violência da sociedade haitiana. A elas se acrescentam as revoltas e as lutas populares, outro tipo de violência com outra função e missão.

Trata-se no caso do Haiti - ou de qualquer sociedade escravizada - de uma oposição fundamental entre a violência que desumaniza e aquela que permite reconquistar esta humanidade, uma violência de perda da liberdade e da dignidade diametralmente oposta a uma violência pela reconquista destes valores inalienáveis. A violência libertadora sempre se opõe à violência opressora; a violência reumanizante é o antídoto da violência desumanizante. Vertus Saint-Louis (2008, p. 36), diria liberdade moderna oposta à liberdade do direito natural dos povos. Todo povo ou todo grupo micro ou macrossocial constituído pode, em qualquer momento, mostrar seu caráter violento na medida em que sua existência, seus valores, seus interesses e seus direitos estão em perigo. Se a violência não é monopólio de ninguém, mas uma arma que cada um pode usar no processo de sua construção social, então a liberdade é o princípio mais sagrado a tornar o ser humano violento.

Em fim, se a violência colonial e desumanizante é aquela que roubou na vida das pessoas o gosto da moralidade, da justiça e da convivência social, a violência libertadora tende a restituir tudo isso a elas. Uma dinâmica constante de traição política entre dirigentes dentro do estado haitiano, instabilidade crônica, imobilismo, desconfiança, superstição política e crise de poder, a corrupção sistêmica, tudo isso faz parte das cicatrizes da violência colonial que, infelizmente, a revolução não conseguiu curar. O país nasceu com uma diplomacia muito menosprezada, miséria, pobreza, exclusões sociais, insegurança, desrespeito, racismo, prejuízos, são as sequelas da supremacia da violência fratricida  sobre o diálogo e do uso errado da violência libertadora num contexto inapropriado. Do ponto de vista sociológico, a violência libertadora é intrínseca à revolução, uma república precisa de construção e não de violência seja ela supostamente libertadora, isso é irracional a ponto que podemos dizer que o Haiti contemporâneo parece mais cruel do ponto de vista social do que o Haiti colonial no sentido de que sua violência simbólica, social e política de hoje é a produção dos seus próprios filhos.


4. A herança da violência

Este conceito de violência libertadora nos faz pensar de outra maneira a delinquência infantil, juvenil e adulta, as violências coletivas urbanas com uma natureza subversiva e louca nos bairros populares que, por suas características, parecem ser uma outra faceta desta violência emancipadora num outro contexto social marcado por suas próprias realidades, ou seja, não são miséria, pobreza e fome que provocam a violência dos jovens de lá, mas ela seria o grito deles para sair e emancipar-se deste estado abjecto e indigno, seria uma maneira de denunciar sua exclusão, seu abandono pelas autoridades governamentais. Ou, talvez, esses jovens tenham aproveitado da herança de sociedade violenta que lhes deixou a história do Haiti. Infelizmente, essas imagens de miséria e de pobreza acrescentada à violência desonram a nação mais fantástica da história mundial.

Após sair da colonização, a sociedade tinha que enfrentar um problema crucial de convivência social e coletiva. Se na sociedade pós-guerra a violência de tipo colonial acabou ao mesmo tempo que a violência libertadora, mas não a violência em si. Com efeito, ela passou a existir sob as formas intrínsecas. As violências que nos produzimos e reproduzimos contra nos mesmos nos levam à uma autodestruição e aumentaram os riscos da violência externa que se traduzia pelas ameaças exteriores da comunidade internacional. Esta situação criou uma frenesia que paralisou toda a organização interna das instituições sociais, políticas e econômicas do país, por conseguinte, um verdadeiro freio ao desenvolvimento, à construção de uma vida coletiva tranquila e à socialização social, cultural e intelectual do ser haitiano. Ora, o principal problema da sociedade haitiana pós-colonial não era a violência em si, mas o desafio de saber viver coletivamente, de priorizar os interesses sociais e de tratar sem violência e agressividade suas diferencias.

Todos os regimes ditatoriais passados até Duvalier - 30 anos atrás - se inscreveram nesta dinâmica de produção e de reprodução da violência como arma de dominação e de permanência no poder. A intolerância ilimitada acabou com a vida de todos aqueles que pretendem defender justiça social, direitos humanos, democracia, liberdade e bem-estar social, começando pelos líderes mais influentes até o indivíduo mais comum. Tantas coisas degradantes e consternadoras marcaram a vida deste país e tendem a apagar sua história gloriosa que abriu com coragem, força e autoridade os caminhos da verdadeira liberdade e democracia na América.

A exploração na sociedade dita “democrática” nos parece moralmente mais cruel e inumana do que a do sistema colonial. Por quê? Porque no sistema colonial o escravo tem consciência da sua escravidão e sabe que, sem camuflagem e enganação, ele não tem liberdade nem direito à educação, à alimentação, à saúde, enfim, tudo depende da única vontade do mestre. Isso é o fato concreto da vida dele num sistema dominado por aqueles que acreditam deter um direito natural de domesticar e matar os outros. É a realidade da sua desumanização apesar da sua humanidade. Num tal contexto, a escolha é clara: submeter-se ou revoltar. Se a escravidão é um crime contra a humanidade, a miséria e a pobreza dessas massas que moram nas periferias populosas, miseráveis e insalubres como Cité Soleil o são também. É uma violência simbólica e uma colonização invisível. Numa sociedade extremamente desigual com 80 % dos indivíduos na pobreza, 60 % na pobreza extrema e 10 % detentores da maior parte das riquezas, a democracia haitiana é uma escravatura camuflada.

Sem cair num historicismo, num determinismo ou num essencialismo, mostramos, de maneira bem resumida, que se a violência era necessária para conquistar a independência e a liberdade, ela não pode sê-lo, no entanto, para consolidá-las e desenvolver o país. Nesse sentido, a violência pode ser entendida como uma etapa a franquear para um povo, mas não a base ou a finalidade da sua existência nem da sua organização social e administrativa. Em algum momento da vida de uma sociedade é fundamental que se saiba distinguir quando violência é a solução e quando é o problema. Sem esta distinção é a confusão absoluta. Se a sociedade haitiana é, na sua essência, uma sociedade violenta e conflituosa, o lugar de Cité Soleil é muito interessante neste debate. Todavia, as violências e os conflitos que se produzem lá têm algumas particularidades a entender.

5. Cité Soleil como protótipo desta herança?

É claro que Cité Soleil – como qualquer outro município onde as violências coletivas e os conflitos armados são endêmicos – seja um produto da história contemporânea da sociedade haitiana, e está reproduzindo as mesmas formulas de respostas violentas às necessidades sociais e econômicas. As particularidades das violências e conflitos em Cité Soleil, é que, primeiro, eles nascem num contexto histórico contemporâneo de ditadura e de golpes de estado sucessivos, no qual as desigualdades sociais e raciais, as perseguições políticas, as exclusões sociais, a corrupção, as fugas dos intelectuais, as violências políticas, as violências sociais estavam em neta recrudescência. Em segundo lugar, são confrontações violentas e armadas entre várias frações de grupos armados rivais que, não tendo interesses fixos, se colocam à disposição da demanda mais luxuriosa. Por fim, terceiro, eles são caracterizados por um nível de frequência e de repetição que nunca mudou de fonte nem de conteúdo, ou seja, uma perenidade de conflitos e de violência alternada.

É evidente neste caso que, uma sociedade de reprodução da desigualdade, da exclusão, da fobia, do racismo, da discriminação familiar e escolar, da corrupção, produza violência e criminalidade. Com efeito, a situação catastrófica dos bairros populares como Cité Soleil, Martissant, Bel Air, La Saline já são uma comprovação palpável e visível dos efeitos desastrosos da violência e dos conflitos armados que, na nossa análise, são uma prorrogação, uma continuação e uma reprodução dos conflitos políticos que acontecem em nível mais alto das instituições sociais e políticas. Falando de violências coletivas e conflitos armados de natureza urbana no Haiti contemporâneo, Cité Soleil é o bairro que, nos últimos dez anos, tem o registro mais alarmante: 104 homicídios em 2010, 110 em 2012, com 80 % pelas armas de fogo. Ele representa 22 % de todos os homnicídios cometidos nas zonas metropolitanas.

Ora, foi desde os anos 1990 que Cité Soleil começou a se tornar um bastião de violência e de conflito armado entre grupos rivais que, na verdade, têm um objetivo idêntico: ser o líder hegemônico que controla Cité Soleil. Se a intervenção da policia nessas rivalidades seria para diminuir seus impactos nefastos sobre a população, porém, às vezes, ela cria mais problema do que resolve. A violência dos sujeitos armados é substituída pela violência policial. Por sua posição geográfica, sua história, suas características, sua composição social, seu ambiente, sua habitação, sua vulnerabilidade, Cité Soleil – mesmo se não seja o único bairro violento do país – é um caso interessante para compreender a essência da violência e do conflito na sociedade haitiana assim como o problema da institucionalidade que os afetam.

É importante entender que a lógica dos conflitos armados em Cité Soleil, da sua frequência e repetição e da permanência dos grupos armados traduz a transição da violência libertadora às outras violências  que bloqueiam a sociedade. As razões pelas quais os grupos rivais se confrontam entre si numa municipalidade tão pobre e miserável, onde 80% da população vivem na pobreza extrema, não são dialectizadas. Seria muito fácil ou simples responsabilizar unicamente os grupos armados sem olhar, de um lado, a incompetência e a incapacidade do governo de resolver este problema que fragiliza ainda mais as condições sociais e econômicas dos grupos vulneráveis. Do outro lado, olhar os grupos armados numa perspectiva criminosa sem entender que eles são o primeiro centro de socialização das crianças em Cité Soleil, que eles são constituídos de jovens com inteligência, objetivo, reivindicação, ambição, motivação, interesses, mas em condição marginal e discriminadora, que pertencem a uma estrutura social violenta, é ir fora da complexidade do fenômeno. 

Estamos falando aqui de jovens pais e responsáveis de famílias, sem maturidade, que têm obrigações biológicas, sociais e econômicas a satisfazer quotidianamente numa sociedade onde só acerca de 25 % de pessoas têm um emprego. Suas exigências domésticas como cuidar filhos e mulheres, comer, se vestir; exigências materiais como comprar bens, pagar aluguel, por fim, exigências sociais como festejar ou ajudar um parente, estão num impasse. Na ausência de trabalho, de emprego, de desenvolvimento social, como eles podem responder a todas essas exigências sem recorrer à violência e à criminalidade? Assim, a violência urbana em Cité Soleil não pode ser considerada como libertadora, ao contrário, ela é uma corrupção e uma contaminação da violência libertadora incompreendida e mal explorada na sociedade atual.

Conclusão

Em suma, falar de violência libertadora hoje não é fazer apologia da violência, ao contrário, é entender a violência numa dimensão mais crítica do ponto de vista da sociologia contemporânea, compreender que a liberdade quando ameaçada se torna uma conquista violenta. Há etapas distintas no uso da violência, todas as violências não são idênticas, e, como fato social, a violência sempre tem um objetivo, acontece num espaço e afeta um indivíduo ou uma coletividade. Utilizar o caso do Haiti enfatizando sua sociologia histórica era ideal para sustentar que a utilidade da violência corresponde ao respeito de algumas regras naturais e sociais e que o uso errado das mesmas pode provocar consequências muito lamentáveis. É por isso que os Estados se dotam do uso da violência que eles chamam violência legítima. O abandono definitivo da violência é quase uma missão impossível. Todavia, ela pode ser racionalmente controlada para não ficar só desastrosa e consternadora.

Referências

EDOUARD, Robenson. Violences et ordre social en Haïti: Essai sur le vivre-ensemble dans une société postcolonial. Québec: Presses de l´université du Québec, 2013.Violences et ordre social en Haïti: Essai sur le vivre-ensemble dans une société postcolonial. Québec: Presses de l´université du Québec, 2013.
FANON, Frantz. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 1961.
MADIOU, Thomas. Histoire d´Haïti. Tome III (1803-1807). Port-au-Prince: Henri Deschamps, 1989.
NAU, Émile. Histoire des caciques d´Haïti. Port-au-Prince: Fardin, 1854.
SAINT-LOUIS, Vertus. Mer et liberté: Haïti (1492-1794). Port-au-Prince: [s.n.], 2008.
XAVIER, Crettiez. Les formes de la violence. Paris: La Décuverte, 2008.




[1] Os historiadores e viajantes, contemporâneos da descoberta, não se concordam sobre o número da antiga população do Haiti. Alguns falam de um milhão, outros até três (...) Oitocentos mil almas é um número que comportam o espaço do país e a facilidade de subsistir, até para selvagens (nossa tradução) (NAU, 1854, p. 80).
[2] O suicídio dos Índios traduz, na história do Haiti, uma expressão de rejeição do sistema de opressão. Era a maneira mais pacífica para os Índios lutar. Além disso, ele consiste em uma autosanção que eles se têm imposto a si mesmos como forma de resistência e de resposta à violência da escravidão.
[3] Os cólons, os capitães-generais Leclerc e Rochambeau tinham exercido tantas crueldades sobre os indígenas como estes se faziam, por assim dizer, uma virtude de tornar crime por crime aos Franceses. Eles se tornavam tanto ferozes quanto seus perseguidores. Pode-se admirar-se das vinganças exercidas por aquele que a escravidão tornou cruel? Porém, quanto ao general Rochambeau, ele pertencia a um povo envelhecido na civilização (nossa tradução).

[4] A colônia francesa de Santo Domingo, parte ocidental da ilha do Haiti, nos pareceu inserida numa rede internacional de conflitos entre os maiores potências da Europa, rivalizando pela dominação do comércio do planeta e pela exploração dos seus recursos humanos e materiais. Temos associado o advento da liberdade de 1794 na colônia de Santo Domingo ao movimento das Luzes da Europa, às comoções sociais e políticas que sacudem a França desde 1789, e às guerras da revolução francesa que acontecem em 1792 e 1793 (nossa tradução).