Introdução
A
estratégia de ocupar cargos no Estado faz
parte dos repertórios de interação entre Estado e movimento social, lembrando
que o conceito de repertório foi inventado por Tilly para analisar as ações dos
movimentos sociais. Estatisticamente, é difícil dizer quantas vezes ativistas
sociais conseguem entrar no Estado, fazem o trânsito entre Estado e sociedade
civil e vice-versa, todavia, desde o século XX, essa estratégia empregada pelos
movimentos sociais se torna muito famosa e consegue colocar em xeque a
homogeneização, a opacidade e a impermeabilidade do Estado burocrático. Mas,
quais são a importância e os limites dessa estratégia? Este artigo quer, então,
discutir esse problema provocando algumas reflexões. Assim, vamos, primeiro, considerar
a relação entre Estado e movimento, segundo, definir do conceito de repertório,
para, por fim, abordar essa estratégia cuja discussão será baseada em três
estudos de casos feitos por Abers, Serafim e Tatagiba, Dowbor e Silva e
Oliveira.
1.
Relação
entre Estado e Movimentos sociais
A
relação entre Estado e movimentos sociais sempre foi um assunto que ocupa um
lugar central nos debates contemporâneos, tanto na ciência política como na
sociologia. Tal relação se identifica – dependentemente da época, dos atores e
do contexto político – seja ao conflito, nesse caso os dois campos se opõem
antagonicamente[1],
seja à colaboração entre os dois onde os dois atores, a saber, o Estado e os
movimentos sociais, criam entre si um canal de dialogo e de discussão para
facilitar a interação[2]. Ademais, essa relação pode ser vista também numa
perspectiva mais ampla de diferenciar ação
política institucional – no centro da qual se encontram o Estado e os
partidos políticos – da ação política não
institucional que é obra de um conjunto de atores da sociedade civil, dentre
os quais podemos citar os movimentos sociais (Goldstone apud Dowbor, 2014, p.
89-93). Nesse sentido, é possível estar em presença de uma multiplicidade e
diversidade de atores que interagem entre si e com o Estado, que só a teoria de
redes sociais e políticas poderia nos ajudar a entender as interações e
inter-relações entre eles.
Na
leitura da maioria dos textos de diferentes autores como (ABERS, SERAFIM E
TATAGIBA, 2014; ABERS E TATAGIBA, 2011; ABERS E BÜLOW, 2011; OLIVEIRA, 1993;
CAMILA, 2013; DOWBOR, 2014; SILVA E OLIVEIRA, 2011), entre outros, que abordam a
questão das relações entre Estado e Movimentos Sociais, onde a ênfase se coloca
nas diversas táticas que estes utilizam para organizar suas lutas, três ideias
fundamentais chamam nossa atenção. A primeira é que percebemos que a maioria
dos avanços e progressos que acontecem nas sociedades contemporâneas, por
exemplo, no caso da sociedade brasileira, nascem no âmbito dessas relações conflituosas
e são ao mesmo tempo fruto de grandes lutas que aquelas sociedades têm levado através,
principalmente, dos movimentos sociais tanto fora como dentro do Estado[3]. A
segunda se refere ao fato de que, ao construir entre si certas relações e ao
interagirem-se, as ações do Estado têm impactos positivos sobre os movimentos
sociais[4]
incentivando-os a se institucionalizar e a se tornar cada vez mais fortes por
um lado, mas, por outro lado, o Estado também acaba de ser fortemente influenciado
por esses movimentos que o pressionam cada vez mais. Nesse sentido, há
possibilidade de falar de influência mútua e de enxergar nessa interação um
espaço ao mesmo tempo de conflito e de acordo (CAMILA, 2013, p. 103-104). Portanto,
– é o que constitui a terceira idéia –, não somente as conquistas da sociedade
passam essencialmente pelas lutas dos movimentos sociais, mas sobretudo,
atingidas difícil e duramente, estas foram também possíveis pelo tipo de
repertório usado[5].
Porém,
isso não significa que o Estado não é ou não pode ser, de por si mesmo, progressista,
mas, ele o será mais se for pressionado por uma sociedade civil forte, bem organizada
e institucionalizada, cujas demandas e reivindicações, exprimidas geralmente através
dos movimentos sociais, traduzem sempre sua insatisfação das políticas públicas
conduzidas pelo Estado. Essa pressão, que deve ser vista como sendo produzida
num âmbito relacional e interacional, é suscetível obrigar então o aparato
estatal a ser mais aberto e permeável; reformular de concerto com a sociedade
civil os projetos políticos – um dos espaços de predileção não apenas de
encontro entre Estado e sociedade, mas sobretudo, de interação entre eles –; reforçar
os espaços de participação institucional já existentes; criar outros espaços de
debates e de diálogos para que a sociedade civil possa, amplamente, participar
nas decisões políticas.
Em segundo lugar, seria errado interpretar essa relação entre Estado e movimentos sociais só de maneira contenciosa, ou seja, não vale a pena de continuar considerando o Estado e os movimentos dois inimigos cujas relações são sempre regidas por confrontações e contradições. Tal concepção é, apesar de tudo, compreensível se for preciso inseri-la num contexto político em que o estado é fechado. Porém, se nos basearmo-nos só nela, ela limitará nosso entendimento do papel real que tanto os movimentos sociais como o Estado podem desempenhar na construção de uma sociedade democrática. Ao invés disso, essas relações precisam ser entendidas, de um lado, como uma possibilidade para que a sociedade possa obter mais satisfação nas suas reivindicações, para o Estado se transformar do outro.
Em segundo lugar, seria errado interpretar essa relação entre Estado e movimentos sociais só de maneira contenciosa, ou seja, não vale a pena de continuar considerando o Estado e os movimentos dois inimigos cujas relações são sempre regidas por confrontações e contradições. Tal concepção é, apesar de tudo, compreensível se for preciso inseri-la num contexto político em que o estado é fechado. Porém, se nos basearmo-nos só nela, ela limitará nosso entendimento do papel real que tanto os movimentos sociais como o Estado podem desempenhar na construção de uma sociedade democrática. Ao invés disso, essas relações precisam ser entendidas, de um lado, como uma possibilidade para que a sociedade possa obter mais satisfação nas suas reivindicações, para o Estado se transformar do outro.
Assim,
essa interação produz, pelo menos, duas consequências: Primeiro, a
transformação do Estado em um espaço de militância, ou seja, com essa
estratégia, os movimentos têm mais facilidade não apenas de levar suas demandas
dentro do Estado, pressionar o Estado, valorizar a política do conflito, mas
também criar outras arenas participativas, segundo, a criação de uma zona de
intersecção[6]
(BANASZAK apud SILVA e OLIVEIRA, 2011; MEZA e TATAGIBA, 2014) onde Estado,
partidos políticos, movimentos sociais, organizações sociais, ONGs, entre
outros se cruzam. Nesta zona de intersecção tão complexa, que podemos chamar
também espaço de encontro e de cruzamento, os atores se influenciam mutuamente,
se interagem entre si e essa interação produz fortes impactos sobre os próprios
diversos atores e também sobre o espaço no qual ela está acontecendo.
O
que convém finalmente memorizar aqui é que a relação entre Estado e movimentos
sociais é problemática, complexa e sempre conflituosa, porque, além de ter como
base de construção a confiança, trajetória, historia e experiência compartilhadas;
ela se funda sobre uma infinidade de elementos interligados entre si e sobre
uma multiplicidade de atores que faz o
vai e vem entre o Estado e a sociedade civil interagindo entre si. Por fim,
os atores podem conjugar vários repertórios entre si para não somente
construir, manter e fortalecer essa relação, mas também para chegar a ingressar
o governo. Daí a importância de definir o conceito de repertório antes de abordar
a estratégia dos movimentos sociais de ocupar cargos no Estado.
2.
Definição
do conceito de repertório
Tilly
(2008) é um dos pioneiros do conceito de repertório de ação que, à origem, foi concebido
para analisar as diferentes táticas de lutas dos movimentos sociais. Ele e
Goldstone (2003) têm esse mérito de ter propondo uma teoria de repertório que
permite de entender melhor o conjunto de estratégias que os movimentos empregam
para lutar contra o sistema burocrático que representa o Estado. Nesse sentido,
em Tilly, o conceito de repertório apareceu num contexto de política
contenciosa definida por uma relação de confrontação e de protesto entre o
Estado e o movimento. Na definição seguinte ele entende por repertório:
[...] um conjunto de performances reivindicatórias, que são
criadas historicamente, com o alcance limitado e de caráter familiar e
circunscrevem geralmente as formas que as pessoas empregam para se engajar na
política contenciosa (TILLY, 2008 apud DOWBOR, 2014, p. 85-86).
Em
Goldstone, os protestos dos movimentos são ações extrainstitucionias e todo
movimento tem por finalidade a política institucionalizada convencional,
portanto, para ele, há uma complementaridade entre protestos e ação política
convencional (GOLDSTONE, 2003 apud DOWBOR, 2014, p. 89-90). Assim, qualquer
outro repertório de ação acrescentado ao protesto se relaciona, de acordo com
Goldstone, à ação política convencional como sustenta a seguir:
[...] a atuação de movimentos sociais e ação política
convencional constituem duas formas diferentes, porém paralelas, para
influenciar os resultados na política. São frequentemente criadas pelos mesmos
atores, almejam as mesmas instâncias e visam aos mesmos objetivos (GOLDSTONE,
2003, p. 8 apud DOWBOR, 2014, p. 90).
Na
definição de Tilly, há, pelo menos, dois elementos que merecem chamar nossa
atenção sobre o conceito do repertório: a noção do limite e da variação. Com
efeito, o uso de um repertório se limita a uma prática social que, sendo independente
dos atores e antecipando sua existência, os mantém num constrangimento
dinâmico. Ou seja, os atores não podem usar, inventar, reproduzir ou
reinterpretar qualquer tipo de repertório de ação sem levar em conta a
realidade cultural, social e política no qual eles estão evoluindo. Esse limite
é, podemos dizer, uma imposição do social e do político. Em outras palavras, o
sucesso e o resultado do repertório de ação dependem não somente da natureza da
sociedade na qual ele é aplicado, mas também do contexto histórico em que os
atores o empregam. Isso quer dizer que o repertório não pode ser um data nem uma coisa infinita ou cair do
céu, mas, sendo em constante mudança e obedecendo à condição da evolução e da
dinâmica do movimento, ele é uma criação cultural e uma construção metodológica
dos atores coletivos para levar suas reivindicações[7]. O
aspecto de variação, em segundo lugar, leva em conta duas variáveis: tempo e
espaço. Os parâmetros temporais e locais desempenham um papel crucial no uso do
conceito de repertório, pois, cada sociedade apresenta configurações sócio-políticas
diferentes em períodos e espaços distintos, ou seja, o uso dos repertórios muda,
de maneira constante, de uma período a outro e de um campo a outro[8] no
sentido bourdieusiano do termo (DOWBOR, Op. cit. p. 86-87). Todavia, num mesmo
período histórico podemos ter uma variação espacial de repertórios.
Os elementos
acionados do repertorio podem variar de um lugar para outro no mesmo período
histórico o que explicaria, por exemplo, os conjuntos de ações diferentes
utilizados pelos ativistas antinucleares na França e nos Estados Unidos. Os
primeiros usaram primordialmente as demonstrações nas ruas, por que o sistema
político estava fechado, enquanto os segundos se valeram da ação nas cortes de
justiça e via partidos (Ibid, p.
87).
Portanto,
o repertório é um conjunto de táticas de luta coletiva e historicamente pensado
e construído, que se adapta ao espaço geográfico onde os movimentos acontecem. Ele
não é estático, mas dinâmico e conjuntural, em outras palavras, são as
conjunturas sócio-políticas que criam de fato os repertórios. Desse fato, se
hoje o contexto político muda, então o repertório de relação entre Estado e
movimento muda também, isto é, contenciosa e antagônica que era essa relação
nos séculos XVIII e XIX, ela acaba de ser transformada em interação e inter-relação
desde o século XX. Essa transformação é importante para o futuro da democracia
e traduz uma vitória da sociedade civil que conquistou mais espaços públicos de
interagir com o Estado. Assim, segundo Silva e Oliveira (2011), o antagonismo,
a inimizade e a oposição radical que caracterizavam as relações anteriores
entre Estado e movimentos sociais não devem ser tratados como um caráter universal
e geral destes, mas devem ser entendidos e colocados num contexto histórico e
político em que a sociedade civil estava em face de um regime ditatorial,
opressor e fechado aos debates.
Nesse
sentido, alguns cuidados precisam ser tomados quando se pensar no conceito de
repertório de Tilly, principalmente, no caso brasileiro onde ele encontra
alguns limites.
É
preciso lembrar, então, que o conceito de repertório de Tilly foi inventado num
contexto histórico em que o Estado e os movimentos sociais eram vistos como
inimigos e seu encontro sempre terminado por ações violentas. Em outras
palavras, os movimentos sempre se colocam em confrontação ao Estado como um
adversário a eliminar e vice-versa. Mas, as mudanças sociais, políticas,
econômicas e culturais que aconteceram nas sociedades contemporâneas recolocam
em questão o uso do conceito de repertório de ação tal como proposto por Tilly
(2008) e Tarrow (2009), o que incentivam os autores contemporâneos a pensar de
outra maneira as relações entre Estado e movimento[9]. Nessa
perspectiva, o caso brasileiro é impactante e é ele que coloca em xeque essa
velha concepção. Com efeito, alguns teóricos dos movimentos sociais no Brasil[10]
sublinham, ao menos, três cenários que permitem entender esses limites.
Primeiro, alguns movimentos sociais, desde o regime militar e ditatorial, já conseguiram
interagir com o Estado e até entrar no aparato estatal, o que coloca em xeque a
concepção opaca e homogênea do Estado. Os projetos políticos, em segundo lugar,
criam excelentes ocasiões de diálogos, de discussões e de compartilhamento de
objetivos entre Estado e movimentos. Por fim, a criação de movimentos de peso
no Brasil, é, na maioria das vezes, o fruto de alianças criadas entre atores sociais
e governamentais que atuam dentro e fora do Estado, o que, segundo Abers,
Serafim e Tatagiba, aparece ser contraditório à visão do Estado como
contraponto do movimento[11]
A partir daí – apesar da sua utilidade e sua importância – o conceito de repertório de Tilly necessita de um repensamento para adaptá-lo a realidade atual e pensar as relações entre Estado e movimentos sociais não só numa perspectiva de conflito, mas também de cooperação. Assim, Guigni e Passy propõem ampliar o conceito de repertório de ação contenciosa de Tilly completando-o pelo repertório de cooperação conflituosa entre Estado e movimento no âmbito da política do conflito (GUIGNI e PASSY apud DOWBOR, Ibidem, p. 86). Baseando-nos nessa proposta de Guigni e Passy, a quem convém o mérito de reconstruir o conceito de repertório de Tilly, podemos dizer que essa política de cooperação faz chamada a uma constante ajuda mútua e recíproca entre Estado e movimento no âmbito da execução das políticas públicas. Por outro lado, mergulhando-se na realidade política brasileira, Abers, Serafim e Tatagiba propõem completar o repertório de ação de Tilly pelo repertório de interação no objetivo de entender as interações entre atores estatais e ativistas sociais, principalmente, no âmbito da estratégia que consiste em ocupar cargos dentro do Estado forjando as barreiras burocráticas deste.
A partir daí – apesar da sua utilidade e sua importância – o conceito de repertório de Tilly necessita de um repensamento para adaptá-lo a realidade atual e pensar as relações entre Estado e movimentos sociais não só numa perspectiva de conflito, mas também de cooperação. Assim, Guigni e Passy propõem ampliar o conceito de repertório de ação contenciosa de Tilly completando-o pelo repertório de cooperação conflituosa entre Estado e movimento no âmbito da política do conflito (GUIGNI e PASSY apud DOWBOR, Ibidem, p. 86). Baseando-nos nessa proposta de Guigni e Passy, a quem convém o mérito de reconstruir o conceito de repertório de Tilly, podemos dizer que essa política de cooperação faz chamada a uma constante ajuda mútua e recíproca entre Estado e movimento no âmbito da execução das políticas públicas. Por outro lado, mergulhando-se na realidade política brasileira, Abers, Serafim e Tatagiba propõem completar o repertório de ação de Tilly pelo repertório de interação no objetivo de entender as interações entre atores estatais e ativistas sociais, principalmente, no âmbito da estratégia que consiste em ocupar cargos dentro do Estado forjando as barreiras burocráticas deste.
Porém, esse repertório de cooperação
não diminui nem apaga os outros repertórios preexistentes, a saber, marchas,
protestos, mobilizações etc., ao contrario, em qualquer momento, antigas
estratégias podem reaparecer e novas resurgir, pois, o conceito de repertório
em si mesmo remete a uma conexão entre o passado e o presente, a uma
atualização e reatualização das velhas rotinas do passado, por fim, ele coloca
em jogo tradição e inovação (Ver PATERNIANI, TATAGIBA e TRINDADE, 2012). Também,
seja a cooperação ou a interação, nenhum dentre elas não significa, em segundo
lugar, a ausência do conflito entre Estado e movimento[12]
traduzindo uma certa política de convivência, de cumplicidade ou de
clientelismo entre eles. Em resumo, como foi dito, os repertórios são diversos,
pertencem não a um ator individual, mas a um ator coletivo e variam em função
da conjuntura política. Para evitar se perder nessas diversidade e variedade
dos repertórios, gostaríamos de enfatizar um, a saber, ocupar cargos no Estado, ressaltando sua importância e seus
limites.
3.
A
importância e os limites da estratégia dos movimentos sociais de ocupar cargos no Estado
Existem
várias maneiras pelas quais o Estado interage com a sociedade civil em geral,
com os movimentos sociais em particular. Dentre as quatro rotinas[13]
de interação entre Estado e movimentos sociais definidas por Abers, Serafim e
Tatagiba, a que consiste em ocupar cargos
no Estado será a base da nossa reflexão aqui, porque, ao conectar-se com as
outras, ela permite entender melhor as relações que se tecem entre Estado e
movimentos sociais. O objetivo é provocar uma reflexão ressaltando a
importância e os limites dessa estratégia. Assim, vamos nos referir aos estudos
de caso feitos por Abers, Serafim e Tatagiba (2014), Dowbor (2014), Silva e
Oliveira (2011) para discutir essa estratégia.
É
claro que a estratégia de ocupar cargos
no Estado – nascida para mostrar que o Estado não é mais homogêneo e que os
movimentos sociais não se contentam só em lutar fora do Estado praticando uma
política não institucional –, não é uma novidade da era democrática no Brasil,
pois, essa prática remonta ao regime militar. Também, ela não é uma inovação do
chamado “novos movimentos sociaisˮ. Todavia, ela traduz a vontade dos
movimentos de não apenas influenciar as políticas públicas do Estado, mas
sobretudo, ter dentro do Estado seus próprios partidários que atuam, ao mesmo
tempo, em seu nome e em nome do Estado. A maior dificuldade destes, então, é,
de um lado, conseguir dissociar interesses individuais dos seus movimentos dos
interesses estatais que refletem as demandas da sociedade em geral, desempenhar
um papel duplo como ativista social e ator estatal, do outro.
Antes
entrar nesses estudos de casos, precisamos entender que a estratégia de ocupar cargos no Estado é uma das especificidades
dos partidos políticos que foi imitada pelos movimentos sociais, segundo, ela trouxe,
no Brasil, avanços e mudanças muito significativos nas relações entre Estado e
sociedade civil, particularmente, na alteração do esquema burocrático deste
último demonstrando que o lugar dos movimentos não está só nas ruas, pode estar
também no Estado, por fim, sendo um repertório de interação, ela toma a forma
do Estado no qual se aplica.
Com
efeito, no estudo de caso de Abers, Serafim e Tatagiba (2014) sobre os
diferentes movimentos sociais no governo Lula[14], constatamos,
por um lado, uma forte interligação entre as diferentes rotinas, do outro lado uma
conexão causal direta de cada uma delas com a estratégia de ocupar cargos no Estado que, com
certeza, em cada contexto, produz efeitos diferentes. Por exemplo, o movimento
urbano da reforma urbana celebrou sua vitória da criação do Ministério das
Cidades após muitos protestos e participações em conselhos e conferências.
Ademais, a nomeação, em 2003, de Olívio Dutra como ministro vem reforçando essa
vitória mesmo que, após dois anos, em 2005, ele fosse substituído por Márcio
Fortes, o que, consequentemente, mudou as rotinas de interação Estado-Movimento
e também as relações entre os funcionários do Estado e os ativistas (Ibidem., p.
336-337). No caso da segurança pública, as autoras enfatizam pouco a questão de
ocupar cargos, pois, trata-se de um
caso particular em que a iniciativa venha das diversas organizações da
sociedade civil que não acabaram de alertar as autoridades sobre os múltiplos
casos de violência que ocorreram na sociedade brasileira, em particular, no Rio
de Janeiro (Ver p. 342-346).
Ocupar cargos no Estado
não foi uma estratégia rejeitada pelo movimento da reforma agrária engajada
pelo MST[15],
mas, a experiência no passado com o governo de Cardoso, faz que esse movimento
– que usa como repertório protesto e ação direta, daí sua tradicional e histórica
tática de combate: O acampamento –, tomasse alguns cuidados antes de entrar
nesse processo: “Os movimentos rurais associaram o modelo de conselhos à
abordagem mercadológica da política agrária de Cardoso, vendo-os com
desconfiançaˮ (Op. cit., p. 340). E, apesar da sua proximidade com o governo
Lula, que é chamado seu aliado, ele continua usando os repertórios
tradicionais, como, por exemplo, acampamentos, marchas, protestos, talvez, agora
com mais elegância que anteriormente. De fato, em 2003, essa proximidade mudou
o esquema de interação entre o Estado e o movimento e possibilitou uma dinâmica
de negociação, de relação direta e personalizada com o governo e de
participação institucionalizada que se efetua através dos conselhos e das
conferencias, assim, os espaços de dialogo e de discussão entre o Estado e o
movimento foram fortalecidos de maneira constante e continua. Assim, além dos
cargos conseguidos, as conquistas desse movimento foram também a reestruturação
das instituições responsáveis pela implementação das políticas públicas
relativas à reforma agrária, por exemplo, o CONDRAF[16]; a
criação de outras instituições para reforçar as outras, neste caso, o CONSEA[17];
e, por fim, o fortalecimento da política de participação institucional e da política
de proximidade entre atores estatais e sociais.
Essa
estratégia virou uma das particularidades do governo Lula na medida em que
estamos observando não somente uma transformação dessa estratégia desde o
regime militar, mas, sobretudo, uma certa “invasãoˮ do governo pelos militantes
(grifo nosso). Com efeito, as duas gestões do Lula contenham a maior presença
de ativistas dos movimentos sociais em comparação aos governos anteriores, isto
é, enquanto no primeiro mandato a porcentagem era de 43 % no segundo ela passou
a ser de 45 % (Ibidem., p. 326). Em outras palavras, ministros e secretários
nesse governo foram oriundos dos movimentos sociais, alguns continuaram
conservando esse estatuto enquanto estão agindo em nome do estado, portanto,
são atores multifacetados.
No
seu estudo, Monika Dowbor toca num outro aspecto do problema. Ela conseguiu mostrar
que essa estratégia dos movimentos sociais de ocupar uma função dentro do
Estado é, de um lado, dominada por um critério, a indicação; por outro, ela enfrenta
um grande desafio, a permanência. Geralmente, aponta ela, são cargos designados
por indicação, que ela chama também “cargos comissionadosˮ, e, por conseguinte,
eles não são permanentes. Na citação seguinte, aparecem esses dois elementos:
Eleutério assumiu o primeiro cargo no Estado por indicação
do seu professor da UNB e membro de Nutes-Clates, Henri Jouval. Tratava-se de
um DAS 101.2, ou seja, daquele cuja nomeação dependia do Ministro e não do
Presidente da República [...] Foi um percurso de dois anos, de 27 de novembro
de 1980 a 29 de novembro a 1982, no qual Eleutério desenvolveu um plano de
medidas de perfil reformista que racionalizavam as ações da agência responsável
pela saúde previdenciária, o Inamps, e avançavam na integração das ações do
MPAS, do Ministério de Saúde e das Secretarias Estaduais de Saúde ampliando a
cobertura de acesso à saúde [...] A entrada nos cargos é, portanto, conjuntural
e a permanência neles, descontínua (DOWBOR, 2014, p. 98-99, 117).
O
problema não se situa, apesar de tudo, na nomeação, pois, sendo um ato
administrativo de uma autoridade legal e legítima, ela obedece com certeza a
critérios previstos pela lei sobre a função pública. Mas, ele se encontra na
permanência que resulta do fato de que são cargos puramente políticos e
estritamente ligados a esse repertório de interação. Com efeito, a permanência de
um ativista social nos cargos estatais depende estritamente da vontade do seu superior
hierárquico e da permanência deste último na sua função. Sobre esse assunto
Dowbor relata o seguinte:
A aproximação com Carlos Sant’Anna, que era cotado e foi de
fato nomeado Ministro de Saúde, resultou na indicação de Eleutério para o cargo
do Secretário Geral do Ministério de Saúde, no qual permaneceu enquanto o
titular que o nomeou esteve na direção da pasta, até, aproximadamente, os meados de 1986 (Ibidem.,
p. 104).
Em
segundo lugar, a questão do nível dos cargos não é também problemática, porque
alguns militantes conseguiram ocupar cargos de alto nível, ministro, secretário
etc., a começar, por exemplo, por Hésio Cordeiro, um ativista que compartilhou
uma impactante trajetória de militante com Eleutério, ele foi presidente do
Inamps, uma das prestigiosas instituições brasileiras responsável pela política
de saúde de previdência do governo. É uma função cuja nomeação deve ser feia pela
presidência da república (Ibidem). Todavia, a autora conseguiu mostrar também
que, apesar de um tempo muito curto passar no Estado, esses ativistas
conseguiram realizar importantes reformas, por exemplo, no caso de Eleutério,
em um tempo recorde, ele conseguiu racionalizar as ações do Inamps com sua
equipe formada, com certeza, de companheiros de luta. Isso mostra também a
relação que poderia existir entre permanência e realização, ou seja, a
permanência poderia facilitar uma realização mais eficiente e uma avaliação desta
mais justa e racional.
No
que diz respeito ao assunto do perfil dos ocupantes e dos diferentes cargos
disponíveis, é melhor se referir ao estudo de D´Araujo e Lameirão[18], para ter mais ideias. Com
efeito, como elas sublinham,
ocupar cargos no Estado tem a ver também com o perfil dos ocupantes que
cumprirão tal função que, ela mesma, obedece a vários critérios (Ver D´Araujo e
Lameirão, 2009, p. 33-56). Em Dowbor assim como no trio (Abers, Serafim,
Tatagiba) e em Silva e Oliveira, a ênfase sempre se coloca no aspecto do
militantismo como perfil dos ocupantes de cargos no Estado.
Portanto,
do nosso ponto de vista, a permanência dos militantes nos cargos estatais é um
grande desafio para essa estratégia dos movimentos e pode ser um obstáculo à
aplicação da qualidade de política que estes sonham levar dentro do Estado.
Para evitar que estes sejam tratados como grupos de pressões que estão lutando
para ir fazer figuração no Estado e não para pôr ações positivas cujas
realizações seriam vantajosas para a sociedade dependentemente do tempo passado
dentro do Estado, então, da permanência, é importante que a teoria dos
movimentos sociais leve em consideração esse elemento. Pois, se essa estratégia
não se faz acompanhar de uma política de permanência, é difícil avaliar
eficientemente as ações e os resultados dos militantes ao longo do tempo.
O
terceiro estudo de caso a levar em consideração se refere à pesquisa feita por
Silva e Oliveira sobre o movimento de
economia solidária no Rio Grande do Sul. Ela é dominada pela ideia central
de retraçar os caminhos de entrada dos militantes no Estado e tem o mérito de
reformular o sentido teórico da relação entre Estado e movimentos sociais.
Nesse estudo, conseguimos identificar, até então, ao menos dois caminhos que
levam os ativistas ao aparato estatal. Primeiro, o caminho da intersecção
Estado-Movimento (SILVA e OLIVEIRA, 2011, p. 87-93), segundo, o caminho do trânsito
institucional possibilitado pela interpenetração entre movimentos e partidos
políticos, lembrando que as relações entre movimentos sociais, organizações sociais
e partidos políticos são não somente um assunto tão complexo e complicado, mas
também, uma questão pouco abordada pela ciência política brasileira (Ibidem.,
p. 94-99). Portanto, no caso do movimento
de economia solidária, o caminho é, ao mesmo tempo, triplo e complexo,
pois, não tem como estudar a trajetória dos militantes desse movimento até
chegar a entrar no Estado sem considerar, de um lado, o papel relevante de um
partido político como o PT que tem um vínculo associativo enorme, do outro
lado, a atuação destes nas outras organizações da sociedade civil. É o que
Mische, citado por Silva e Oliveira, chama de militância múltipla (Ibidem, p. 96). Não é possível tratar neste
artigo de todas essas relações complexas entre movimentos sociais e partidos
políticos nem daquelas que envolvem, além desses dois, o Estado e as
organizações sociais, como, por exemplo, as ONGs.
Todavia,
essa pesquisa tem, para nosso trabalho, uma certa importância complementar em
comparação aos dois precedentes no sentido de que conseguiu nos mostrar que, no
caso do movimento de economia solidária,
ocupar cargos no Estado não se reduz à cooptação nem à corrupção, mas traduz a
capacidade dos militantes de transitar entre o Estado, os partidos políticos e
as diversas instâncias associativas, a capacidade do Estado e dos movimentos de
coabitar juntos. Essa estratégia pode significar também que a experiência no
Estado pode servir de catalisador para os ativistas atuarem nas ONGs ou em
outras organizações da sociedade civil e vice-versa. Por uma outra vez, Silva e
Oliveira nos apresentam um ator multifacetado, ou seja, que tem não apenas a
capacidade de permanecer no Estado enquanto conserva vínculos com seus
movimento e partido, como também a facilidade de transitar de um campo a outro.
O
estudo de Silva e Oliveira é, além disso, interessante porque ressalta a
maneira de que se faz o trânsito institucional. Por trânsito institucional os
autores entendem
o deslocamento contínuo de militantes sociais-partidários
por diferentes espaços de atuação (organizações sociais, partidos, fóruns
institucionais e posições governamentais), o que é, em grande medida,
possibilitado pela interpenetração partido-movimento. Assim, vitórias e
derrotas eleitorais tendem a produzir um trânsito significativo de militantes
da sociedade civil para o governo e vice-versa, gerando mudanças rápidas e
intensas nas oportunidades de acesso institucional (tanto em termos de grau
quanto em termos de forma) (Ibidem., p. 98).
Por
fim, ela salienta também a complexidade e a dificuldade de tratar da relação
entre Estado e movimentos sociais de maneira isolada, pois, essa relação envolve
uma multiplicidade de atores que têm papeis múltiplos, por outro lado, o fato
de que Estado e movimento compartilham os mesmos atores e que eles acabam de entrar
numa dinâmica de relação inclusão/exclusão. Portanto, ocupar cargos no Estado
não significa, no vocabulário desses atores, ser prisioneiro de uma arena de
ação, mas ter a capacidade de transformar o Estado em redes de ações políticas.
Tanto
no estudo do trio (Abers, Serafim e Tatagiba) como no de Dowbor e de Silva e
Oliveira, três elementos resumem a estratégia de ocupar cargos no Estado. É que, primeiro, essa estratégia não tem
consequências negativas sobre as outras, no sentido de que seria um defeito,
nem não expressa o auge final de satisfação para os movimentos. Segundo, a
política de proximidade parece ser a porta de entrada mais fácil para ocupar cargos
no Estado, terceiro, o apoio sistemático e constante dos funcionários com vínculos
participativos aos movimentos é muito frequente. Segundo esses autores, além das conquistas que
ela possibilitou[19],
a estratégia de ocupar cargos no Estado
deve ser entendida como um processo histórico, e, como todos os outros
repertórios, ela é uma construção histórico-cultural e não espontânea. Por
exemplo, no caso do Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU): “o repertório
de interação Estado-Sociedade nesta área da política foi construído em um
período de 30 anos e incluiu todas as quatro rotinas discutidas anteriormente”
(ABERS, SERAFIM e TATAGIBA, op. cit. p. 334).
Porém,
apesar de ser importante e suscitar outras problemáticas, a estratégia de ocupar cargos no Estado tem seus
limites. Nos baseamo-nos nas considerações acima para ressaltar alguns (será
grifo nosso).
O
primeiro dos limites dessa estratégia é que ela parece ser mais provável no
caso dos governos de aliados, ou seja, quando, em particular no caso do governo
Lula, atores sociais e atores estatais constroem entre si uma relação social e
política quase perfeita baseada na historia e na trajetória política. Nesse
sentido, ela não nos permite entender seus efeitos quando se tratar de um
governo de não aliados, ou seja, na medida em que o aparato estatal é
preenchido de atores que não compartilham entre si uma origem e um passado
comuns de militantismo, essa estratégia seria completamente vazia de conteúdo. Assim,
podemos perguntar, quais seriam a importância e os efeitos dessa estratégia num
governo de oposição ou de transição? Por outro lado, desde o regime militar até
o governo Lula passando pela transição democrática no Brasil, no uso dessa
estratégia, é fácil ver um tratamento privilegiado concedido a alguns
movimentos sociais em detrimento dos outros. O que é suscetível gerar – e gerou
de fato – críticos severos de cooptação, de corrupção, de compra e de
clientelismo contra esses movimentos pelos outros que ficam fora. (Ver ABERS,
SERAFIM e TATAGIBA, 2014; TEIXEIRA, 2005; DOWBOR, 2014)
Há
um segundo limite a sustentar, é que, apesar da sua conexão com as outras
rotinas, como, por exemplo, com a política de proximidade e a participação
institucionalizada, a rotina de ocupar cargos
no Estado não permite analisar como atores estatais e não estatais se
relacionam com as outras organizações sociais; como eles se comportam em frente
de um superior hierárquico no momento de defender os interesses públicos; como,
por fim, interagem entre si quando estarem em presença deste último dentro do
quadro do Estado. Ela se limita portanto a partir do momento em que dificulta
entender claramente o estatuto das funções nas quais os militantes foram
ingressados no Estado. Desse fato, na medida em que ela se baseia em cargos
indicados que, embora sejam importantes e estejam a um nível altamente elevado,
são frágeis e permanecem dependentemente da boa vontade e do humor do superior
hierárquico, é difícil que essa rotina produza os efeitos esperados. Por
conseguinte, a natureza dos cargos e o perfil dos ocupantes fazem obstáculo à
questão da permanência. Ora, a permanência poderia ser um elemento que permite uma
melhor avaliação das ações dos militantes no âmbito da sua atuação dentro do
Estado.
Pelo
terceiro limite entendemos que essa estratégia cria uma certa ambiguidade entre
militantismo e intelectualismo na medida em que, parece, prioriza o primeiro
sobre o segundo, ou seja, ao enfatizar o critério de militantismo, é difícil
entender essa estratégia numa perspectiva intelectualista. Portanto, apesar de
serem muito formados, a entrada dos militantes no Estado, pelo que percebemos, se
traduz mais como uma forma de recompensar sua trajetória militante do que sua
capacidade profissional e intelectual de ocupar aquele cargo. Nesse sentido, o
artigo propõe que, no âmbito da análise da estratégia de ocupar cargos no
Estado, as capacidades intelectuais e o militantismo se conjuguem junto. Essa
estratégia, não nos permite entender se os cargos a serem ocupados pelos
militantes já existiram ou foram criados especificamente para eles adaptando-os
a seu perfil, ou ainda, se são cargos especialmente fabricados e reservados à
origem aos militantes de todo movimento social que tem como ambição de entrar
no Estado. Essa estratégia, por fim, não permite sustentar se, embora todo
movimento social nasça para defender demandas insatisfeitas, um dos seus
principais objetivos é entrar no Estado.
O que é interessante sublinhar aqui, apesar dessas críticas, é que a estratégia ocupar cargos no Estado não muda nada na natureza e no caráter da burocracia do Estado, nem diminui a força e a energia dos movimentos sociais de lutar. Isso quer dizer que, além dos impactos mutuais, os atores permanecem autônomos e distintos uns dos outros dentro mesmo do desenrolamento dessa interação. Essa estratégia nos permite ver como a divergência e a convergência são importantes para a democracia, uma possibilidade de coabitação entre divergência e diferença numa perspectiva positiva, por fim, como Estado e sociedade podem se relacionar sem, no entanto, ser necessário buscar entre eles um ponto comum e um consenso (TEIXEIRA, op. cit.).
O que é interessante sublinhar aqui, apesar dessas críticas, é que a estratégia ocupar cargos no Estado não muda nada na natureza e no caráter da burocracia do Estado, nem diminui a força e a energia dos movimentos sociais de lutar. Isso quer dizer que, além dos impactos mutuais, os atores permanecem autônomos e distintos uns dos outros dentro mesmo do desenrolamento dessa interação. Essa estratégia nos permite ver como a divergência e a convergência são importantes para a democracia, uma possibilidade de coabitação entre divergência e diferença numa perspectiva positiva, por fim, como Estado e sociedade podem se relacionar sem, no entanto, ser necessário buscar entre eles um ponto comum e um consenso (TEIXEIRA, op. cit.).
Mas,
será que todos os movimentos sociais recorrem a essa rotina?
No
caso do movimento de moradia de São Paulo, por exemplo, uma das táticas
dominantes foi a ocupação de prédios e terrenos públicos e privados vazios em
São Paulo, uma estratégia que, apesar de tudo, foi severamente criticada tanto
pelas autoridades públicas como pela sociedade civil pela causa da sua violação
flagrante do direito à propriedade privada. Apesar das divergências que
suscitou esse repertório, ele foi o mais adaptado tanto ao contexto político
como ao espaço em que o movimento acontecia. Portanto, a resposta a essa questão
pode ser obtida, primeiro, na visão mesma de cada movimento. Com efeito, no
caso do movimento de moradia, o objetivo principal é ter direito à moradia digna e não se preocupa de
buscar cargos no Estado. Segundo, no perfil dos militantes. O militantismo foi
o único critério convincente para que o movimento de moradia tenha produzido
resultados, pois, o nível acadêmico da maioria e, em particular, dos lideres,
era muito baixo (somente 10,9% tem ensino superior concluído enquanto 43% tem
ensino médio incompleto)[20]
para permitir de ocupar cargos de alto nível no Estado. Daí a importância para
que os movimentos tenham no seu seio gentes formadas além do pré-requisito
militante (PATERNIANI, TATAGIBA E TRINDADE, 2012). Por fim, é importante lembrar
também que, apesar de se convergirem na sociedade civil pela defesa das suas
demandas, os movimentos sociais são distintos entre si e cada um usa os
repertórios mais apropriados, legítimos e legitimados do momento para defender
suas causas. Em outras palavras, cada movimento é um ator coletivo distinto do
outro dentro de uma mesma sociedade civil. Cada movimento é sempre identificado
a um grupo de pressão sobre o poder, todavia, uma pressão que se exerce
geralmente sob a forma exterior (CARRION, 1985, op. cit.).
Considerações finais
O
artigo consegue mostrar que, embora seja um grande avanço no âmbito das
relações entre Estado e Movimentos Sociais, a estratégia de ocupar cargos no Estado deixa para trás
muitos desafios a serem levantados pelos pesquisadores em ciência política e em
sociologia política, dentre os quais podemos sublinhar a questão da permanência
nos cargos, o perfil dos cargos e dos ocupantes, a formação acadêmica dos
militantes, entre outros. A literatura brasileira sobre a interação e
intersecção entre Estado e movimentos sociais não permitiu aprofundar esse
problema, por isso, o deixamos a uma eventual pesquisa em perspectiva. As
questões para tal eventual pesquisa seriam saber se o Estado, sendo consciente
da intenção dos movimentos sociais de ocupar cargos nele, não emprega uma
dinâmica de cargos pré-fabricados para tornar a presença dos militantes mais
figurativa do que ativa, se antes de aceitar qualquer cargo no Estado, os
movimentos negociam e põem certas condições.
Campinas, 12/08/2015
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[1] Em tal circunstancia, podemos falar de uma
interpretação simplista dessas relações, nesse sentido, é difícil falar de
relação entre Estado e movimentos sociais, pois, não somente, não se cria um
canal de comunicação e de intersecção entre os atores, mas também, estamos em
presença de atores que se ignoram mutuamente e radicalmente opostos. Ora, não é
assim que funciona numa democracia (Ver Basnazak apud Oliveira e Silva, 2011).
[2] À origem os movimentos sociais são sempre
vistos como grupos de pressão que conseguem forçar o Estado a abrir mão, ou
seja, a ultrapassar as barreiras burocráticas do aparato estatal mudando suas
decisões (Ver Carrron, 1985, p. 90-92)
[3] Para ter mais ideias sobre algumas
conquistas das lutas dos movimentos sociais, ver Dowbor In Carlos, Oliveira e Romão (2014) (Orgs.), Camila (2013), Abers,
Tatagiba e Serafim (2013), Teixeira (2005), Oliveira (1993), Albuquerque
(2015), Paterniani, Tatagiba e Trindade (2012).
[4] Camila se refere ao conceito de oportunidades políticas para falar
desses impactos (Ver Camila, 2013, p. 104-105)
[5] Segundo Dowbor e Silva e Oliveira, a
generalização do conceito de repertório é um problema a ser superado, pois, um
repertório obedece ao contexto político no qual ele se insere e ao tipo de
Estado-ator em presença. Por exemplo, no âmbito de um Estado autoritário e
excludente, é claro que o repertório de protesto seja a única alternativa dos
movimentos sociais para pressionar o Estado, enquanto se se trata de um Estado
aberto ao debate público num regime democrático, o repertório, dessa vez, pode
se tornar, ação institucionalizada, participação institucional, consulta,
delegação, lobby etc. (Silva e
Oliveira, 2011, p. 89-90; Dowbor, 2014, p. 84).
[6] Nessa zona
de intersecção, como enfatizam Meza e Tatagiba, acontece uma interação
plural e diversa entre Estado, Movimento, Partido político, Organizações sociais,
entre outros. Segundo eles, não se trata de uma zona de influência, mas,
daquela onde cada um dos atores conserva sua autonomia. É por isso mesmo que
analisar essa zona é muito complexo (Meza e Tatagiba, 2014, op. cit).
[7] Ver Paterniani, Tatagiba e Trindade (2012)
para apreciar os repertórios empregados pelo movimento de moradia de Sã Paulo
para pressionar o Estado ao dialogo. Um dentre eles é ocupar os prédios vazios
e ociosos embora tenha criado muitas controvérsias entre os militantes e na
sociedade civil; Ver Albuquerque (2015) para
entender os repertórios de interação sócio-política no âmbito do movimento DCA
no Rio de Janeiro.
[8]Por exemplo, o sit-in, uma estratégia de manifestação pacífica amplamente
utilizada nos anos 1960 pelo movimento de direitos civis nos Estados Unidos,
não faria sentido nenhum aos olhos da autoridade local da França do século
XVIII, onde a ação coletiva se restringia a pequenas comunidades. (DOWBOR, op.
cit., p. 86).
[9] Pois, um dos grandes efeitos dessas mudanças era a
diminuição do poder e da autoridade do Estado sobre a sociedade. Isso resulta,
por um lado, da complexidade da sociedade, do surgimento de vários atores da
sociedade civil cujos papeis se tornaram cada vez mais importantes por outro (Dowbor,
2014, p. 88).
[11] Ver Abers e Von Bulow (2011), Abers, Serafim
e Tatagiba (2014), Dagnino (2002) apud Tatagiba.
[12] O estudo de Abers, Tatagiba e Serafim
(Ibidem, 2014) abordou muito bem esse aspecto mostrando que, apesar de estarem
num governo dito aliado, o do Lula, onde vários militantes conseguem ocupar
cargos importantes no Estado, os movimentos não pararam suas lutas, embora os repertórios
de interação entre Estado e sociedade tenham transformado em negociação,
encontros informais, entre outros. Portanto, a política do conflito sempre
colocou o governo do Lula e os movimentos numa situação de negociação e de
encontros frequentes, geralmente, fora do quadro oficial e formal para
redefinir algumas estratégias e repensar as regras do jogo democrático. Apesar
das insatisfações, podemos dizer que, com os movimentos, em particular, o MST
cujas relações com o PT são, em grosso
modo, uma tradição de longa história e uma política de convivência, o
governo Lula conseguiu estabelecer-se como um modelo de interpenetração
Estado-Partido-Movimento.
[14] Dentre os quais podemos sublinhar o Movimento Nacional da
Reforma Urbana, o Movimento da Reforma Agrária, o Movimento Rural dos
Trabalhadores Sem Terra e as lutas dos diferentes setores da sociedade civil
para a defesa da segurança pública.
[15] O MST não foi sozinho nessas lutas pela
defesa da
terra e da aplicação de uma boa política agrária. Outros movimentos, como, por
exemplo, o CONTAG (Confederação dos Trabalhadores na Agricultura), que usou
como repertório de luta, as marchas, cujo famoso Grito da Terra, retomado pelo MST, participaram também dessa luta.
[16] Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural e
Agricultura Familiar.
[18] As autoras fizeram um excelente trabalho,
com estatística relevante, sobre o perfil dos ocupantes dos cargos criados
durante as duas gestões do Lula. Passados a serem ocupados por funcionários,
sejam eles oriundos de movimentos sociais ou não, são cargos baseados em
critérios tais como: nível escolar, filiação partidária, sexo, vínculo
associativo, entre outros.
[19] De uma maneira geral, as autoras argumentam
que a interação entre Estado e movimento social da era Lula foi marcada por
abertura ao dialogo, às discussões e aos debates públicos no âmbito da política
de participação institucional. Isso pode ser considerado uma conquista para a
construção democrática. Mas, de um ponto de vista mais especifico, três grandes
conquistas foram atingidas no âmbito do movimento urbano: A criação dos
conselhos municipais de habitação, a aprovação da legislação de planejamento
urbano em âmbito federal (o Estatuto da Cidade), e a criação, em 2003, do
Ministério das Cidades. No âmbito da segurança pública, em segundo lugar, é o
aumento dos vínculos (60%) entre as diferentes organizações que atuam na
sociedade. Por fim, no caso do MST, podemos dizer que na era Lula, os
movimentos levaram uma política de proximidade muito forte com o Estado (Abers,
Serafim e Tatagiba, Ibidem., p. 334-346).
[20]
Paterniani, Tatagiba e Trindade, 2012, p. 406.
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