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jeudi 31 mai 2018

A META-MEDIAÇÃO DO RELIGIOSO NOS CONFLITOS ARMADOS EM CITÉ SOLEIL


A META-MEDIAÇÃO DA RELIGIOSO NOS CONFLITOS ARMADOS EM CITÉ SOLEIL

THE META-MEDIATION OF RELIGIOUS IN THE ARMED CONFLICTS IN CITÉ SOLEIL


RESUMO

A palavra meta-mediação é formada por nós a partir do sufixo mediação para caracterizar o aspecto religioso que se esconde atrás dos conflitos armados em Cité Soleil. O prefixo meta significa alguma coisa superior ou que vai além do que é esperado. Ela foi inspirada para explicar como as igrejas, pelo evangelismo e pentecôtismo, pela neutralidade e pela resistência, conseguem ajudar indireta e positivamente a agir sobre este fenômeno sem intervenção física? Este artigo, que faz parte de uma tese em andamento, tem por objetivo de caracterizar e ressaltar a dimensão religiosa dos conflitos armados em Cité Soleil. Ele é dividido em duas partes cuja primeira trata do universo socioreligioso haitiano e a segunda do papel da religião neste fenômeno.

Palavras-chave: Conflito. Religião. Mediação. Cité Soleil.

ABSTRACT

The word metamediation is formed by us from the suffix mediation to characterize the religious aspect that hides behind the armed conflicts in Cité Soleil. The prefix meta means something superior or that goes beyond what is expected. It has been inspired to explain how churches, by evangelism and pentecostalism, by neutrality and resistance, can indirectly and positively help to act on this phenomenon without physical intervention? This article, which is part of an ongoing thesis, aims to characterize and emphasize the religious dimension of the armed conflicts in Cité Soleil. It is divided into two parts whose first deals with the Haitian socioreligious universe and the second of the role of religion in this phenomenon.

Keywords: Conflict. Religion. Mediation. Cité Soleil.

INTRODUÇÃO: A NATUREZA RELIGIOSA DOS CONFLITOS ARMADOS EM CITÉ SOLEIL

É importante começar por entender que, do ponto de vista religioso, os conflitos armados e as violências coletivas em Cité Soleil não são um conflito religioso nem uma guerra de religião. O papel da religião, como vamos ver mais adiante, é estritamente moral e social. A fim de dissipar toda dúvida a este respeito, é fundamental sublinhar que o aspecto religioso nos conflitos armados e nas violências coletivas em Cité Soleil não traduz uma violência étnico-racial ou política com raízes religiosas. Além disso, de maneira geral, as principais confissões religiosas existentes (protestantismo, catolicismo e vodu) que coabitam neste bairro não desempenham neste fenômeno social nenhum papel doutrinal ou confessional de alimentação, de instrumentalização ou de instigação. A comunidade de Cité Soleil não está lidando com grupos armados reivindicadores ou defensores de um ultranacionalismo religioso cego e radical ou de uma ideologia religiosa extremista ligada a uma dentre essas religiões acima mencionadas. Certo, conflitos religiosos toda sociedade já enfrentou e a sociedade haitiana não é isenta desta situação[1]. Também guerra clássica de religião, Haiti já passou por esta etapa entre o fim do século XIX e início do século XX quando o catolicismo estiver perseguindo ferozmente o vodu[2]. Mas, como vamos desenvolver mais adiante, o caso de Cité Soleil é de outra natureza.

Três razões fundamentais provocaram nossa curiosidade em abordar o papel da religião nos conflitos armados e nas violências coletivas em Cité Soleil. Primeiro, a constatação da permanência das atividades religiosas, segundo, a resistência e a adaptação da religião a este fenômeno, e, terceiro, a afluência das pessoas paras as igrejas vistas por elas como espaço de reconforto social. Embora esquecido, ignorado ou menosprezado, vamos ver que o elemento religioso tem sua importância e está realmente presente neste fenômeno. Trata-se de compreender, na perspectiva sociológica, como a religião – entendida aqui como crença individual e estrutura institucional – se posicionou e conseguiu resistir às situações conflituosas e violentas que se desenvolveram neste bairro nos últimos quinze anos. Este interesse não se manifesta porque se trata de conflitos religiosos, Mas de conflitos sociais nos quais o religioso intervém de maneira diferente em comparação ao padrão tradicional.

Ao observar este fenômeno, constatamos que o elemento religioso se manifesta de duas grandes maneiras. Num primeiro tempo, pela sua dimensão social e institucional que consiste nas evangelizações e na organização de campanhas de proximidade e de sensibilização que conseguem fazer das igrejas o melhor espaço de convivência social  e de solidariedade social para os membros da comunidade. Atraídas pelos indivíduos em busca de reconforto social as igrejas se tornaram um símbolo de  resistência na comunidade e um refúgio principalmente para as vítimas. Em segundo lugar, há a manifestação individual e coletiva da fé religiosa que se traduz pela constância e perseverança dos crentes nas atividades religiosas não demonstrando nenhum medo para frequentar suas congregações apesar dos conflitos e das violências que se pioraram. Com efeito, se os conflitos armados diminuem a frequência da participação dos fies nos cultos e reduzem consideravelmente tanto a quantidade dos cultos dominicais e semanais quanto o número dos crentes, eles, no entanto, não conseguiram aniquilar as práticas e as atividades religiosas nesta cidade.

Na ausência de uma base epistemológica e teórica sobre o fenômeno que estamos estudando, partiremos das nossas investigações empíricas que permitirão sustentar três hipóteses suscetíveis de explicar este caráter inabalável e inflexível da religião. Primeiro, a religião beneficiou de um respeito particular na comunidade de Cité Soleil, ganhou a confiança da população, e, por causa disso, ela se tornou uma voz importante a ser ouvida. Este particularismo não é devido a uma crença ou à categoria dos atores religiosos, mas ao medo dos indivíduos nas coisas sagradas e à confiança na ajuda social que a instituição religiosa fornece. Segundo, os conflitos inter-grupos armados que provocam grandes fluxos de êxodo social interno não visam objetivamente as igrejas e suas atividades, e, mesmo se eles as afetem direta ou indiretamente, eles concernem exclusivamente os grupos sociais armados rivais neles envolvidos. Por fim, em terceiro lugar, o elemento mais importante, a religião sempre conserva seu papel de neutralidade trabalhando no sentido da justiça, da paz e da ajuda social sem intervir em favor ou contra um grupo. Isso lhe garante prestigio, confiança e respeito para sua arena assim como para seus atores.

Assim, embora pouco problematizada e quase invisível, a religião sempre foi um ator crucial, ativo e presente nos conflitos armados e nas violências coletivas em Cité Soleil. Ao lado principalmente das vítimas, ela sempre se oferece como alternativa de reconforto social, de terapia social e de consolação porque nela as famílias se reconstituem, os amigos se encontram e as pessoas ressentem algum sentimento de segurança. Esta presença – como será destacado mais adiante – não se encaixa no padrão tradicional em que, ela, a religião, pode ser ora instigadora ou instrumento do conflito ora intermediária entre as partes em conflito. Ela se refere de preferência a um outro tipo mais complexo que, estando além deste padrão tradicional, exige outra reflexão e explicação. Este exercício será possível de acordo com as observações sociológicas e os estudos empíricos que realizamos a partir dos quais viremos que a religião foi realmente um espaço de consolidação da vida social e de resistência. Nesse sentido, dividimos o artigo em duas partes. Enquanto a primeira tratará do universo socioreligioso haitiano a segunda analisará a meta-mediação da religião neste fenômeno.

1.      CARACTERIZAÇÃO DO UNIVERSO SOCIORELIGIOSO HAITIANO

Apesar do decrescimento que sofreu nos últimos 30 anos, o catolicismo[3] permanece ainda hoje a religião predominante no Haiti onde, segundo as últimas estimações de IHSI (2015), 55 % dos indivíduos se declaram praticantes desta religião. O protestantismo – uma religião em rápida ascensão – reagrupa as confissões como Baptista, Metodista, Adventista, Pentecostal e Igreja Episcopal com 28 % de crentes. Os sem religião não ultrapassam 10 % enquanto o vodu ganha em total só 2,1 % de declarantes. As outras confissões religiosas como Franco-Maçonaria, Testemunhos de Jeová, Islamismo e Mórmons representariam a todas elas ao menos 3 %.  Todavia, precisamos tomar essas estatísticas com cuidado por causa das relações confusas em termos de ritos que existem entre Franco-Maçonaria, vodu e catolicismo.

Em Cité Soleil, a partir de um levantamento superficial da Prefeitura, o protestantismo lidera com 310 igrejas em todos os seus vertentes. É a religião dominante neste bairro. Há, além disso, 7 igrejas católicas, 56 templos vodu e 2 mosquetas. A hegemonia do catolicismo está se enfraquecendo e isso teria a ver com as rivalidades religiosas ocorridas com o franco-maçonaria, com o protestantismo e ao surgimento de novos movimentos religiosos, a saber, os pentecostais, os evangélicos e o exército celeste[4], por exemplo. Todas essas confissões religiosas de inspiração protestante e de denominação cristã se implantam, geralmente, nos bairros populosos e pobres como Cité Soleil, onde as demandas sociais em matéria do bem religioso são muito presentes. Elas se envolvem também nos programas comunitários, humanitários e caritativos. Assim, cada uma dessas religiões que constituem o sistema religioso haitiano tem uma caracterização social peculiar que vamos abordar sucintamente não na ideia de fazer uma historicização completa delas, mas no objetivo de o leitor ter um conhecimento suficiente da maneira de que é constituído o universo socioreligioso haitiano.

1.1.O catolicismo
Sabemos que a religião católica tem uma longa história no Haiti que, infelizmente, começou com a escravidão a partir da colonização espanhola em 1492. Ela tem, além disso, a característica de uma religião transportada que pertence a um sistema de dominação e que foi imposta aos dominados. O Código Negro publicado pela França em 1685 proibiu todo outro culto que não seja católico e fiz do clérigo católico a principal administradora do pretendido processo de humanização e de civilização dos escravos. Aquele processo deveria passar, inevitavelmente, pelo catolicismo erigido como a religião da colônia francesa de Santo Domingo. E, mesmo se tivesse um conflito entre o clérigo e os proprietários dos escravos por causa do ensino religioso e das práticas religiosas, na colônia francesa de Santo Domingo, a igreja católica tinha a prerrogativa cultural de educar, batizar e converter os escravos oriundos da África a fim de que estes se tornem muito gentis aceitando a escravidão como uma generosidade de Deus e o catolicismo como uma marca civilizadora. Portanto, as relações entre a administração colonial e a igreja católica não eram sempre harmoniosas, ocorreram alguns conflitos porque para os proprietários dos escravos a evangelização, o ensino religioso, os batismos, as predicações, tudo isso despertou na mente do escravo um sentimento de liberdade que poderia levar à rebelião, tal sentimento é muito perigoso pela sobrevivência da colônia (PRESSOIR, 1945, p. 13-14). É por isso que:
Peu de planteurs admettaient des religieux sur leurs terres: les uns par crainte de voir leur cruauté et leurs moeurs dissolues dénoncées du haut de la chaire, les autres par une méfiance plus ou moins consciente de l´esprit révolutionnaire contenu dans les principes évangéliques (MÉTRAUX, 1958, p. 27).
Querer ou não, a implantação do catolicismo no Haiti colonial coincide fortemente com a formação da igreja católica como potencial apoiadora da escravidão sem negar, no entanto, que alguns padres católicos eram contra a escravidão em si e sustentaram os escravos nas suas lutas pela liberdade. Desta maneira, a revolução haitiana não é unilateralmente a obra do vodu no plano religioso, mas, apesar de tudo, a do cristianismo em geral, do catolicismo em particular (HURBON, 2004, p. 105-110). Se a administração colonial constituiu o motor que faz virar a maquina política e econômica da colônia, o clérigo católico era responsável pela educação social e cultural dos escravos, é melhor dizer pela domesticação mental e pela coisificação dos escravos. Dito de outra maneira, enquanto a instituição colonial se preocupa da parte física do escravo, a igreja católica cuidava da parte espiritual, psicológica e mental. Se, além disso, a administração colonial havia por papel a gerência das coisas materiais da colônia, a igreja católica tinha de gerir as coisas imateriais, a saber, o espírito e a alma do escravo pelo catequismo. Enfim, podemos concluir que a igreja católica e a administração colonial se entenderam para compartilhar o escravo como um objeto em duas partes iguais, e, desde início, a igreja católica influencia as decisões políticas no Haiti. É claro que ela exerça esta influência com a cumplicidade dos dirigentes haitianos, mas ela tem também uma origem.

É um assunto por causa da sua amplitude que não pode ser abordado aqui, então que mereceria um estudo crítico mais aprofundado e separado. Contudo, é importante entender que o caráter apolítico da religião católica está sempre na teoria. Na prática ela exerce controle enorme sobre o aparato do Estado orientando sua política interna e externa. A história do Haiti nos ensina que a igreja católica exerceu uma pressão de ferro sobre o Estado haitiano para que este aceite o catolicismo como religião oficial e combate o vodu como culto demoníaco a fim de que o país seja civilizado e apto a entrar na modernidade ocidental. Esta pressão se cumpre no âmbito da adoção, em 28 de março de 1860, de uma concordata que, ao definir as relações politico-religiosas entre Igreja católica e Estado haitiano, tem consagrado à religião católica um poder quase plenipotenciário muito criticado. Segundo Micial Nérestant (1994), uma concordata é um instrumento jurídico concluído, assinado e ratificado entre o Saint-Siège e um Estado soberano e que trata particularmente das questões religiosas. Ela é de mesmo valor que um tratado comum, só que nela o Saint-Siège age como uma instituição spiritual e atemporal que trata com um Estado físico-soberano e temporal. Portanto, a concordata é um tratado de natureza politico-religiosa no qual as duas partes se concordam sobre seus direitos e deveres em matéria religiosa. Existem, assim, três eventos maiores na sociedade haitiana de lembrança das relações político-religiosas entre o Estado haitiano e a igreja católica: a assinatura da concordata de 1860 e as duas campanhas anti-supersticiosas contra o vodu em 1898 e 1942.

A concordata era só uma espécie de formalidade, porque desde a colonização, a igreja católica dominou o monopólio de educação, de cultura, de religião e beneficiou de muitas vantagens econômicas. Este monopólio nunca foi alterado, embora tenha sofrido algumas modificações. O desenvolvimento das ajudas humanitárias e dos programas sociais da igreja católica a torna uma instituição cada vez mais importante que se aproxima mais das camadas sociais esquecidas pelas políticas públicas do governo. Com efeito, até o fim dos anos noventa as ações e intervenções sociais e caritativas da igreja católica se direcionaram às populações desfavorecidas das zonas rurais onde as missões católicas – mais tarde as missões protestantes – têm um acesso mais fácil do que o próprio Estado haitiano.

É por isso que, apesar do poder totalitarista de Duvalier, da ferocidade e crueldade do seu regime, a superpotência da igreja católica sobre a educação, a cultura e a religião permanece intacta, porque como fino observador das realidades sociopolíticas, ele sabia que precisava da igreja católica para satisfazer alguns desejos da população, particularmente, em matéria de educação, de registro do nascimento, de saúde etc., nas comunidades rurais que permanecem inalcançáveis para o Estado haitiano. O que significa que a igreja católica é um ator muito importante para o Estado haitiano na medida em que ela lhe ajuda a cumprir os papéis que ele mesmo é incapaz de fazer. Ou seja, a fraqueza do Estado haitiano, que se traduz pela corrupção e pelas rivalidades políticas internas constitui uma força para a igreja católica. Assim, sem esquecer alguns centros de saúde, as melhores escolares de ensino primário e secundário, os centros de alto nível de formação universitária e profissional do país pertencem à igreja católica. O que faz com que, além das suas implicações frequentes nas questões políticas do país, a igreja católica é uma instituição muito socialmente engajada nas comunidades mais vulneráveis.

No entanto, algumas modificações ocorreram na religião católica quando, primeiro, o regime duvalierista decidiu usar o catolicismo como arma política, segundo, quando o protestantismo chegou ao Haiti e começou a fazer concorrência com o catolicismo se espalhando rapidamente nos meios sociais onde o catolicismo já se implantou há muito tempo. Como já vimos, Duvalier modificou o clérigo católico que, anteriormente, era totalmente branco e estrangeiro. Por alhures, mesmo se não vamos entrar no debate das rivalidades entre protestantes e católicos nem fazer uma sociologia do protestantismo no Haiti, é importante sublinhar duas particularidades que diferenciam o catolicismo do protestantismo: uma linguagem de massa e a rápida adaptação do protestantismo às realidades sociais existentes. Porque, embora presente nessas zonas, a igreja católica nunca conseguiu apagar nas mentalidades populares a ideia de que o catolicismo é uma religião elitista e de classe, que, dificilmente, fala as linguagens dos pobres e se coloca ao seu nível para compreender seus problemas e lhes fazer esquecer seus sofrimentos cotidianos. Em outras palavras, apesar da sua antiguidade, o catolicismo tinha uma enorme dificuldade de garantir aos indivíduos uma integração social. Foi exatamente o que fez o protestantismo. Por fim, se a linguagem da religião católica era como mágica para as massas incultas e analfabetas, os protestantes utilizam um linguagem popular muito acessível, compreensível e que corresponde exatamente ao que essas massas desejavam.

1.2.A chegada do protestantismo ao Haiti
Como o catolicismo, o protestantismo é igualmente uma religião implantada na sociedade haitiana no século XIX. Ele foi também proibido pelo Código Negro não somente no Haiti colonial, mas também nas todas as colônias francesas. Este código interdisse também toda forma de manifestação religiosa na colônia e os escravos não tinham direito de se reunir qualquer seja a razão. O protestantismo haitiano[5], em particular, tem uma história fascinante que começou efetivamente quando, em 1817, após a conquista da independência, o presidente do sul e oeste do Haiti, Alexandre Pétion, aceitou receber uma missão metodista. A respeito disso Laënnec Hurbon disse:

Cet accueil chaleureux et les contacts subséquents déterminent l´attente de Pétion qui espère que les missionnaires protestants pourront desservir, non à des fins sectaires mais par humanisme, les besoins pressants de la nouvelle République dans le domaine de l´éducation. Les missionnaires fondent une école influencée par la méthode Lancastérienne. Ils visitent la population des principaux centres du sud de la péninsule et suscitent un grand intérêt. Ils prêchent et catéchisent en français et en créole devant des foules, atteignant parfois des centaines de personnes, dans les montagnes surplombant Port-au-Prince. Leur message est sévère: on doit abandonner fétiches, amulettes, sortilèges et droit coutumier; «la fornication et l´adultère», ainsi que le travail le dimanche sont dorénavant condamnés. On incite le peuple à changer radicalement sa façon de vivre (HURBON, 2000, p. 96)
Citamos aqui o sociólogo haitiano para ter uma ideia suficiente[6] da maneira de que, historicamente, o protestantismo se implantou no Haiti, qual foi a natureza da sua mensagem e, por fim, em que setor de atividade social ele ia intervir. Vemos que, realmente, é um movimento religioso que chegou ao país com muita determinação, energia, perspicácia, e, o mais importante, com uma mensagem evangélica muito radical que consiste em uma espécie de metamorfose social total daqueles que são considerados como pecadores. Esta radicalidade data dos conflitos doutrinais relativos principalmente à autoridade do papa e ao purgatório, que, durante a reforma, opuseram na Europa, no século XVI, os católicos e os ortodoxos. Os primeiros missionários protestantes que chegaram ao Haiti eram os Metodistas Britânicos e em seguida os protestantes estadunidenses, a maioria era imigrante fugindo a segregação racial e a escravidão no sul dos Estados Unidos.

Até a ocupação norte-americana, em 1915, só existiam no Haiti alguns 3 000 protestantes (HURBON, 2000, p. 95). Comparando seus primeiros passos com o avanço do catolicismo no país, podemos considerar que o desenvolvimento do protestantismo haitiano de raízes britânica e estadunidense foi um pouco lento. Esta lentidão não dizia respeito só ao protestantismo haitiano, os avanços de algumas igrejas protestantes americanas como Protestant Episcopal Church foram também afetados. Contudo, após ter superado as dificuldades sociais, culturais, políticas e econômicas, ele começou a se tornar uma religião muito importante na sociedade haitiana e sua expansão nos anos sessenta sob diversas vertentes foi espetacular. O protestantismo em si tem muitas fontes. Da versão alemã – seu berço – até às igrejas reformadas da América passando pelas igrejas reformadas da França e da África, a versão protestante que chegou ao Haiti sofreu muitas modificações (PRESSOIR, 2016, tome 1, p. 38-52). E, apesar da influência do protestantismo francês no plano intelectual e cultural, o protestantismo haitiano se encontra, em geral, marcado pelas fontes inglesas e americanas (Ibidem, p. 53).

A lentidão do desenvolvimento do protestantismo desde sua aparição até o início do século XX pode ser explicada pelo contexto social e político muito agitado por sucessão de governos ilegítimos e de regimes ditatoriais, pelos golpes militares frequentes, pelas barreiras políticas e pelos conflitos com a igreja católica (HURBON, 2000, p. 97-99). Mas, se o protestantismo e o catolicismo se opuseram do ponto de vista doutrinal e teológico, ambos se juntam nas lutas contra o vodu. Pois, vimos claramente na citação em cima que, sem nomear explicitamente o vodu, mas alguns elementos a serem achados só no vodu como amuletos e feitiços, o protestantismo vem para completar ou continuar a missão da religião católica[7]: a caça do vodu. Ora, após muitos fracassos, a igreja católica tem abandonado este papel e se consagrou a outras tarefas mais intelectuais e científicas. “Depuis le Concile Vatican II, dit Clérismé, cependant il y eut un changement d´attitude, l´Église catholique se montre plus compréhensive, plus tolérante et même cherche à comprendre le Vodou de l´intérieur (CLÉRISMÉ In HURBON, 2000, p. 223)”. Elemento importante do cristianismo, o protestantismo hoje se mostra, em maioria das suas vertentes, cada vez mais radical a respeito do vodu que a própria igreja católica no passado.

Segundo algumas pessoas, os protestantes representariam hoje 60 % da população haitiana. É perigoso acreditar neste percentual – embora o protestantismo tenha conhecido um crescimento exponencial nos anos oitenta – por causa do fanatismo religioso e das incertezas estatísticas que o caracterizam. Este problema estatístico é devido tanto a uma desordem total do ponto de vista estrutural da organização do setor religioso como a uma falta de controle institucional pelo governo do funcionamento das religiões no território nacional. Ou seja, não há um controle sistemático da criação das igrejas protestantes que estão crescendo de qualquer maneira. O ministério dos cultos que deveria cumprir este papel parece estar ultrapassado por este fenômeno social de pululação das igrejas protestantes. O que engendra um déficit de confiança e de credibilidade para o protestantismo haitiano, cuja principal reclamação desde início é um tratamento igual à igreja católica.

As estatísticas do IHSI segundo as quais 28 % da população haitiana é protestante nós parecem mais confiáveis e razoáveis considerando as margens de erro, porque se trata da única instituição nacional especializada neste assunto e capaz de realizar um trabalho de inquéritos mais sério a este respeito. Ela mesma enfatiza que a expansão muito rápida do protestantismo desde 1980 houve por consequência a regressão do catolicismo na sociedade, tal progressão foi caracterizada pelas estratégias dinâmicas de evangelização e de proselitismo do protestantismo e, além disso, pelo surgimento de novos movimentos religiosos dentro do próprio protestantismo que, através do mundo, é visto como uma religião rebelde às doutrinas do cristianismo. O crescimento vertiginoso do protestantismo no Haiti coincide muito com o período em que o país estava contando suas inúmeras fases de ditadura (civil e militar) até o acontecimento do duvalierismo.

1.3.O vodouismo como fundamento social do Haiti
O vodu haitiano à semelhança do candomblé brasileiro é de raízes africanas (Benim e Congo), ou seja, um produto social dos escravos africanos que foram vendidos pelos seus semelhantes africanos e transportados para Santo Domingo. E, mesmo se alguns dentre eles já tenham conhecido o cristianismo e o islamismo, eles permaneceram agarrados à sua cultura africana. A palavra vodu vem do termo beninês vodoun, que significa espírito e divindade. Na existência do vodu tal como criado na colônia de Santo Domingo, há, em particular, dois momentos históricos que marcam mais sua visibilidade como religião popular. De um lado, as associações noturnas dos escravos com dimensão sociopolítica e religiosa cuja mais importante – ocorrida em 14 de agosto de 1791 – foi chamada Cérémonie du Bois Caïman, e, de outro lado, os momentos em que o vodu tinha que enfrentar as perseguições da igreja católica e dos protestantes. Ambos nunca param de assimilar o culto do vodu ao fetichismo, satanismo e diabolismo.

Com efeito, esta reunião tinha um caráter solene na medida em que ela devia marcar a consagração do vodouismo como verdadeira religião popular dos negros e levar à revolução social tão esperada. Era um evento social, cultural, político e até místico que não escapa à atenção da maioria dos historiadores haitianos embora as versões se diferenciem. Nele  o vodu era como uma força coletiva que animou toda a associação dos escravos (MÉTRAUX, 1958, p. 34-48). Para Ardouin era uma manifestação coletiva crucial na vida dos escravos para não somente conquistar sua independência, mas sobretudo para formar uma nação, enquanto Madiou viu nesta reunião uma espécie de luta racial que traduz o desejo de uma banda de negros africanos com sede de liberdade. Quando os escravos rebeldes se esconderam nas montanhas afastadas era no objetivo de, em primeiro lugar, fugir a escravidão e os tratamentos cruéis e desumanizantes dos colonizadores, em segundo lugar, celebrar livremente seus cultos vodus longe dos olhos dos mestres e, por fim, se reunir clandestinamente para discutir seus planos. É por isso que ela constitui um dos resultados da prática do quilombola e não é por acaso que ela ocorreu no período noturno, que era um tempo fatídico para os escravos. Eles aproveitaram sempre deste momento para se descansar, envenenar seus mestres, passar às ações mais difíceis e compartilhar entre eles as noticias sobre a situação da França.

Certo, esta reunião era perigosa e importante para os escravos, mas ela não era a primeira nem a última que eles concretizaram nos períodos noturnos. Embora interditas pelas autoridades coloniais, as reuniões noturnas entre os escravos eram uma maneira de desafiar a autoridade dos cólons e de permanecer conectados – em perigo da sua própria vida – com os espíritos do vodu. A noite representava o melhor momento em que os escravos contam entre eles tudo que os transtorna na colônia, conseguem refletir para ver como conspirar contra os mestres. Além de ser uma das manifestações raramente públicas do vodu, esta reunião tem uma dimensão extraordinária porque foi nesta noite que os escravos tomaram a decisão mais importante de se rebelar com os brancos e de acabar com a escravidão (SAINT-LOUIS, 2006). Ela tem um caráter especial porque traduz a manifestação socioreligiosa mais intensa das culturas africanas desde a criação da colônia, a união dos escravos na qual eles se sentiram investidos pelo sentimento de liberdade e pelos espíritos dos ancestrais, o momento simbólico para valorizar seus cultos vodus. Em resumo, esta cerimônia noturna era um grande momento de efervescência coletiva, pois, não apenas a noite era sempre para os escravos uma expressão de liberdade, mas esta reunião é a prova da força social que os escravos simbolizavam na colônia.

Essas particularidades não significam que o culto vodu foi autorizado. Como já dissemos, durante a colonização, a única religião permitida era o catolicismo e, vistos como manifestação demoníaca, diabólica e como um paganismo, o vodu e toda prática ligada a ele eram ferozmente caçados pela igreja católica[8]. Era, portanto, quase impossível a prática de qualquer outro culto religioso. A interdição do vodu não se restringe só ao período colonial, ela se estendeu até depois da independência, sobretudo durante a ocupação norte-americana. Todavia, o vodu devia ser praticado ao redor da colônia, nas montanhas onde se esconderam os escravos quilombos, e se espalhar clandestinamente entre os escravos das plantações e domésticos dentro da colônia com, sem dúvida, a cumplicidade dos escravos quilombos. Apesar das interdições, nada impediu que a colônia francesa mais prospera do mundo seja contaminada pelo culto vodu, e esta contaminação religiosa é, em grande parte, o fruto das ações dos escravos quilombos. Pela igreja católica, o vodu constitui um problema de desenvolvimento social para os haitianos lembrando que, após a independência, ela conseguiu, apesar de tudo, conservar sua hegemonia religiosa a tal ponto que até nos anos 80 quase 90 % da população haitiana se dizia católica. Então, a proclamação da independência não acabou com a clandestinidade e a marginalização do vodu, mas o faz entrar numa fase que Fridolin Saint-Louis chama semiclandestinidade.
(...) Aujourd´hui encore, dit-il, il (le vaudou) vit dans une semi-clandestinité, même s´il a reçu une reconnaissance constitutionnelle. Il fait toujours partie du non-dit dans le discours public de la majorité de la population, tout en étant très présent au niveau des représentations et des pratiques. Mais en même temps, on ne peut oublier qu´il a aussi été porteur des résistances contre l´esclavage et contre tout ce que fut, dans l´histoire, le système économique d´exploitation du noir (SAINT-LOUIS, 2000, p. 7).
Nesse sentido, a porcentagem de 2,1 % do vodu encontra sua explicação sociológica no que é compreendido como um falso reconhecimento e visto como uma misturação social dos cultos vodu, cristão, católico e protestante. Esta misturação está oriunda do destes dois fenômenos sociais chamados assimilação e imitação que data da época colonial em que o escravo era submergido num mundo social escravagista essencialmente dominado pelo cristianismo. Se, de um lado, o escravo tinha na colônia uma vida social dominada pela servidão e domesticação, do outro lado sua vida religiosa até sua existência inteira eram agitadas tanto pelos princípios cristãos que pretendiam humaniza-lo e civiliza-lo quanto pelos  cultos vodus que o inspiram um valor diferente: a liberdade. As conversões forçadas, as relações ao mesmo tempo harmoniosas e conflituosas entre o vodu e o catolicismo antes e depois da escravidão, as opressões que este culto sofreu e, por fim, a falha do processo de educação católica forçado, são dentre os principais fatores que explicam como e por que o vodu se assimila e imita legitimamente o cristianismo. Além disso, os primeiros contatos dos escravos com o cristianismo ocorreram desde na África e tiveram impactos tão fortes sobre sua vida como as sequelas permanecem inesquecíveis. O vodu imitou o cristianismo para poder sobreviver e se fortalecer (NÉRESTANT, 1994). Esta imitação e misturação, que existem ainda hoje, mas muito subtil, significam que a catolicização assim como a protestanticização dos vodouisant nunca foi completa.

Falando disso, entre o século XIX e XX, o nível de educação dos vodouisants compelidos a se converter ao catolicismo nunca foi aprimorado, pois, nas zonas rurais, nos Lakou, eles continuam auto-conservando e praticando seus rituais voduícos. Isto é devido à decadência dos padres católicos corruptos e se explica pelo fato de que o peso de dominação da igreja católica começou a se deteriorar e pelo afeto dos vodouisants à cultura africana. As perseguições dos adeptos do vodu por causa do seu pertencimento religioso os levam não a negar voluntariamente o vodu, mas a fingir e fortalecer sua fé religiosa para ressurgir com mais forca e determinação. Como disse Hurbon nas margens do seu célebre livro, Les mystères du vaudou, em parte, as perseguições e repressões serviram ao vodu a ser mais resistente, forte e permanente. A imitação pelo vodu dos cultos cristãos participa também desta resistência. É dizer, em outras palavras, que as represálias eram uma espécie de benção para o vodu (HURBON, 1993, p. 68; MÉTRAUX, 1958, p. 58).

A migração forçada e não voluntária dos vodouisants para o protestantismo e seus movimentos corolários participa também deste processo de misturação que, ao contrário do que foi atendido, não é um abandono das práticas voduícas, mas uma recomposição mista entre ritos vodus e cristãos. Segundo Hurbon, ritos, festas, cerimônias, calendário litúrgico do vodu são uma imitação do cristianismo. O excelente estudo de Alfred Métraux sobre o natal no vodu haitiano dá para perceber ao mesmo tempo imitação e originalidade (1958, p. 201-216). As campanhas de conversão forçada e de destruição dos objetos vodus dos anos oitenta, muito denunciadas e criticadas nas imprensas internacionais e na sociedade haitiana, eram percebidas como uma re-colonização do país. Mas, era um fiasco, pois, no fundo, os santos da igreja católica já tinham migrado para o vodu tomando outros nomes. Por exemplo, Legba, chefe dos portões no panteão vodu, é a figura emblemática de Santo Pedro no catolicismo;  Saint Jacques le Majeur é encarnado por Ogou Batala ou Ogou Feray e assim por diante. O que significa que as relações entre vodu e catolicismo são ainda intrínsecas. Desta forma, não seria exagerado falar na sociedade haitiana de um vodu católico ou de um catolicismo voduíco. Contudo, a ideia aqui não era definir o vodu a partir do cristianismo, mas mostrar que o vodu, como toda religião a parte inteira, foi também influenciado por outras religiões com as quais ele estava em contato.

Há duas dimensões sociais na manifestação do vodu que devemos sublinhar. Primeiro, o vodu é considerado como a essência da cultura popular dos haitianos antes e após a conquista da independência e da liberdade, ou seja, um cimento social que conecta as massas e lhes concede uma identidade social, uma religião que permanece imanente às práticas sociais e aos hábitos sociais deles. Em segundo lugar, o vodu é uma religião de resistência que consegue expressar perfeitamente as calamidades, os sofrimentos, as dores psicológicos e sociais do haitiano e que lhe lembra de sua ancestralidade. Assim, o vodu é um culto ao qual recorre o haitiano em aflição e em busca de dimensão mística, espiritual e mágica para ter sucesso no plano sentimental, social, político ou econômico.

O etnólogo, Jean Price-Mars, é um dos famosos intelectuais haitianos – senão o primeiro – que tenha atraído nossa atenção sobre a profundeza social, cultural e religiosa do vodu. Seu famoso livro, Ainsi parla l´oncle (1928), um verdadeiro hino não só ao vodu, mas à cultura africana em geral, um dos estudos mais completo sobre o vodu, defende a tese segundo a qual o vodu constitui a essência da vida cultural cotidiana dos haitianos e a base da construção social da sociedade haitiana. Para ele, as raízes haitianas são africanas e o vodu é este elemento que nos permite voltar para a África se precisarmos saber quem somos realmente, Não precisa discutir inutilmente se o vodu é uma religião ou não, o doutor Price-Mars já resolveu esse problema sustentando três aspectos racionais suficientes – inspirados das Formas elementares de Emile Durkheim – que explicam por que o vodu é uma religião como todas as outras. Com efeito, o vodu tem seus próprios seres espirituais, seu corpo sacerdotal que administra os cultos, os ritos e as coisas sagradas, sua própria cosmogonia que relata a fundação do mundo e, por fim, sua própria teologia que explica as relações entre as loas e os crentes (PRICE-MARS, 1928, p. 44-50). Tudo que se destaca em baixo permite entender mais amplamente que o vodu é uma religião completa.

Le Vaudou est une religion parce que tous les adeptes croient à l'existence des êtres spirituels qui vivent quelque part dans l'univers en étroite intimité avec les humains dont ils dominent l'activité. Le Vaudou est une religion parce que le culte dévolu à ses dieux réclame un corps sacerdotal hiérarchisé, une société de fidèles, des temples, des autels, des cérémonies et, enfin, toute une tradition orale qui n'est certes pas parvenue jusqu'à nous sans altération, mais grâce à laquelle se transmettent les partie essentielles de ce culte. Le Vaudou est une religion parce que, à travers le fatras des légendes et la corruption des fables, on peut démêler une théologie, un système de représentation grâce auquel, primitivement, nos ancêtres africains s'expliquaient les phénomènes naturels et qui gisent de façon latente à la base des croyances anarchiques sur lesquelles repose le catholicisme hybride de nos masses populaires (PRICE-MARS, 1928, p. 45).
Na escravatura mental, uma das funções do colonizador consiste em fazer tudo para que o escravo possa negar, menosprezar, esquecer e discriminar sua própria raiz social, cultural e identitária africana cujo vodu faz parte integral. Porém, o colón não podia compreender que separar o escravo da sua terra natal não é sinônimo de cortá-lo totalmente das suas raízes culturais e ancestrais, a tarefa mais difícil. A negação do vodu é a negação da própria identidade haitiana, pois ele é a alma do povo haitiano. Sem dúvida, o vodu com todos os seus componentes (amuletos, tambor, imagens sagradas,, lençóis, etc.) é uma riposta à escravidão, um mergulho na África, um hino, um refrão, uma melodia, uma canção para superar as dores, enfim, o folclore da sociedade haitiana. Lembramos que o vodu nasceu numa sociedade colonial com uma característica tabu que permaneceu até hoje em alguns meios sociais e religiosos. É por isso que o estudo de Price-Mars é interessante porque inicia o processo de tirar o vodu da situação de interdito para colocá-lo numa dimensão de pensamento intelectual e científico problematizando as raízes sociais e culturais do vodu e ressaltando sua imanência à maneira de ser, sentir e agir de cada haitiano.

Seria ininteligível acreditar que ele não tem sua própria moral, porque na sua essência o vodu se ancora aos costumes e hábitos – principais fontes da moral – dos haitianos sem esquecer que ele possui uma ética semelhante a qualquer outra religião grande mundial. Ele permanece, portanto, a religião popular enraizada na história social e cultural do país enchida de mistérios que ninguém vai conseguir decifrar. A respeito disso, é bom retomar esta frase de François Houtart prefaciando o livro de Saint-Louis:
Il n´est donc guère facile de distinguer toutes les fonctions exercées par le vodou tout au long de l´histoire haïtienne, car il est, à la fois, protestation et expression festive, exaltation symbolique du monde de la nature et action magique pour en contrecarrer les effets, facteur d´identité et de pouvoir social. C´est dire que toute analyse du vodou est nécessairement un voyage au coeur de la société (SAINT-LOUIS, op. cit., p. 7-8).
Gostaríamos de concluir esta parte enfatizando o problema de auto-declaração do vodouisant da sua fé religiosa. Para nós, ele é de ordem educacional, afeta o haitiano na sua identidade, faz com que ele tem subestima de si mesmo e está à origem da consequência da discriminação dos vodouisants na sociedade haitiana. Este problema demonstra também que as sequelas das campanhas anti-supersticiosas segundo as quais o vodouisant é um analfabeto que precisa ser civilizado e o católico uma pessoa educada e civilizada que traz a civilização, não desapareceram. Muitos vodouisants, chamados Les rejetés, sofreram no interior do próprio catolicismo outras formas de discriminação racial e de exclusão social, jamais nenhum dentre eles conseguiu alcançar um nível de educação e de cultura elevado. Eles foram deixados na escala social mais baixa e tratados como crentes do terceiro estado, porque sua educação religiosa foi muito incompleta e corrupta. Assim, eles nunca conseguiram integrar-se na comunidade católica nem alcançar um nível hierárquico adequadamente superior na religião católica. Isto é causado pela falta de confiança da hierarquia católica nas capacidades intelectuais desses novos adeptos oriundos do vodu, pelo medo de ver o catolicismo corrompido pelos cultos vodus e pelo conservadorismo religioso da igreja católica.

Por fim, o medo que os adeptos do vodu têm para declarar e exibir sua fé se expressa pelo que nós chamaríamos um quilombola religioso acompanhado de uma perseguição religiosa silenciosa. Com efeito, o medo de serem criticados, atacados e perseguidos, de sofrer represálias, leva muitos vodouisants a aceitar não declarar sua pertença religiosa a fim de se autoproteger. A maioria prefere dizer que é católica acrescentando o sufixo «não praticante». Agindo desta maneira, eles estão dando razão aos preconceitos e sentimentos de inferiorismo que Price-Mars chamou bovarismo coletivo, em lugar do qual usaremos o termo bovarismo individual para falar de uma atitude individualista que leva o indivíduo não a se ver e  a se aceitar como ele é exatamente, mas a se assemelhar com o outro. Infelizmente, sem querer abaixar o nível espiritual, social e cultural vodu, o fato real é que muitos vodouisants se veem como católicos, alguns como cristãos e outros como protestantes. Na verdade, a tendência na sociedade haitiana, é que entre um católico e um vodouisant não há muita diferença.  No espírito ancestral, o vodu é uma religião de autoproteção e de autoconfiança que inspira o haitiano a lutar e a resistir contra as atrocidades e impiedades do sistema opressor, a não aceitar uma sentença social pré-fabricada por ele por causa das suas origens sociais africanas.

2.      A RELIGIÃO COMO META-MEDIADORA NOS CONFLITOS ARMADOS EM CITÉ SOLEIL

A expressão meta-mediação, construída por nós a partir do sufixo mediação é para caracterizar o aspecto religioso que se esconde atrás dos conflitos armados em Cité Soleil. O prefixo meta significa alguma coisa superior ou que vai além do que é esperado. Ela foi inspirada para entender a maneira de que as igrejas, pelo evangelismo e pentecôtismo, pela neutralidade e pela resistência, conseguem ajudar indireta e positivamente a agir sobre este fenômeno sem intervenção física. Por sua vez, a palavra mediação tem dois sentidos. No passado, ser mediador significava representar alguém para discutir e negociar em nome dele, mas este sentido é menos usado há muito tempo. Ser mediador hoje é ter uma posição neutra e imparcial entre as partes em conflito. Em outras palavras, se no passado o mediador era, exclusivamente, um representante legal ou informal de uma pessoa numa situação conflituosa, hoje ele é um personagem neutro constituído pelas partes em conflito para lhes ajudar a resolver seus problemas. No que diz respeito ao tema que estamos tratando, o primeiro sentido será abandonado em prol do segundo. Por mediação entenderemos então um método técnico, social e profissional de resolução dos conflitos criado no tempo e espaço e conduzido por uma terceira pessoa chamada mediador. O nome mediador vem do latim mediatus que traduz uma ação ou reação que, supostamente, necessita a intervenção de um intermediário para ser realizada. Já que na teologia cristã encontramos a figura de Jesus como mediador entre Deus e os humanos, mas a palavra data de 500 antes J.-C e o papel de mediador se encontra em cada religião. Um mediador intervém geralmente numa situação de conflito e tem por responsabilidade de levar as partes a resolver seus problemas de maneira autônoma e pacífica. Não vamos tratar integralmente do conceito de mediação, mas precisamos nós interessar ao que apontam, sucintamente, alguns autores sobre o assunto. Christophe Carré, primeiro, disse:
La médiation fonctionne à peu près comme la conciliation mais le médiateur nest pas tenu de rechercher une solution à tout prix. Son rôle est dabord et avant tout de restaurer la communication, de faire en sorte que les opposants entretiennent une relation plus pacique en surmontant leurs antécédents. Il sefforce d’être réaliste, concret et objectif (CARRÉ, 2013, p. 172).

Para Christine Marsan, a mediação é a intervenção de um terceiro que traduz que os protagonistas são ultrapassados pelo conflito, a situação social do conflito está bloqueada, a solução amigável está no impasse. Nas páginas seguintes do seu livro, a autora à semelhança de Christophe Carré elabora uma série de regras que, resumidamente, tratam do contexto, da finalidade e do diagnóstico da mediação (MARSAN, 2009, p. 84-92). Todavia, o estudo de Christophe Carré é mais completo e apresenta uma visão global do que é a mediação do ponto de vista conceitual, metodológico, etimológico e epistemológico.

Por outro lado, o caráter sociológico relevante do estudo desses autores, é que a intervenção do terceiro nos conflitos cria dois fenômenos sociais interessantes. Primeiro, o início de um processo de reconstrução dos elos sociais entre as partes. Este processo intervém a partir do momento em que os protagonistas falharam nas suas tentativas de negociação. Em segundo lugar, temos um terceiro que vai cumprir, sem pretensão de deter autoridade, uma função eminentemente social que é a conciliação. Para Christophe Carré (2013), a conciliação é um tipo de negociação assistida, uma continuação da negociação interrompida ou falhada, enfim, o resultado da mediação. Em geral, o terceiro anima as discussões e faz tudo para manter as partes numa posição de paz social sem impor qualquer tipo de opinião nem influenciar a decisão delas. A meta de toda mediação é levar as partes a achar seu próprio acordo, a resolver por si mesmas seu próprio conflito na perspectiva de reconstituir as relações sociais entre elas. Isso é o ideal de todo processo de mediação. Porém, a mediação será um sucesso se uma das partes não enxergaria no mediador um personagem autoritário e partidário.

Le médiateur n’est donc pas une autorité : il ne tranche rien, n’impose pas, interdit peu – et toujours pour garantir la liberté des parties. Il facilite, favorise, encourage, motive. Son art est étrange : les parties l’acceptent à leur table précisément parce qu’il n’a aucune autorité sur elles ; et c’est précisément parce qu’il en est dépourvu que les parties, lorsque la médiation aboutit, se reconnaissent pleinement dans l’accord qu’elles ont elles-mêmes produit, avec le soutien du médiateur, et découvrent la force même du procédé (PEKAR LEMPEREUR, COLSON e SALZER, 2008, p. 13).

A tarefa de todo mediador consiste em propor às partes as melhores pistas que as permitirão chegar sozinho a um acordo. Um objetivo muito delicado na medida em que, de um lado, o desempenho do papel de terceiro está estritamente condicionado pelos princípios da boa vontade das partes de permanecer na discussão e, do outro lado, as partes têm que aprovar, reconhecer e legitimar simultaneamente a presença do terceiro entre elas, senão um problema de legitimidade arrisca surgir. Eis como Jean-Nicolas Bitter enxerga a participação do terceiro num conflito:

Ainsi, lorsqu´un tiers intervient dans un conflit pour proposer ses services aux parties impliquées dans le but de les aider à trouver une issue à la crise, on pourra considérer le pouvoir et le savoir-faire proposés comme neutres dans la mesure où le fonctionnement et la dynamique sont clairement exposés aux concernés, et que ceux-ci peuvent librement choisir d´accepter ou de refuser de les appliquer. La conception de la neutralité envisagée dans le modèle dont il est question ici ne rime pas avec «objectivité» (par rapport à des faits donnés) ni avec «nécessité», comme c´est le cas dans une conception classique de la «neutralité» (BITTER, 2003, p. 289).

O autor colocou o dedo diretamente num dos obstáculos da mediação: o individualismo, a identidade e a liberdade de cada uma das partes nele envolvidas. Do ponto de vista sociológico, a mediação é um papel muito frágil, difícil e complexo por causa ao menos da glorificação desses três valores que, geralmente, estão à origem dos conflitos sociais. Com efeito, cada grupo social tem sua própria personalidade individual a salvar, está sempre pronta a defender sua identidade e, além disso, na base da sua liberdade, ele não é obrigado a aplicar as conclusões da mediação. Ademais, temos que deixar claro que a mediação não é uma resolução dos conflitos, mas um processo suscetível de levar a esta dimensão. E, mesmo se as partes estivessem de acordo, o mediador não pode ter a certeza absoluta de que a mediação será um sucesso no caso, por exemplo, uma das partes, de má intenção, estiver chantageando. Assim, qualquer seja o tamanho do conflito – individual, interpessoal ou coletivo – a metodologia da mediação de priorizar diálogo, comunicação e conciliação entre as partes e de colocá-las numa situação de autodecisão permanece a mesma.

Mas, aqui, nossa interrogação preocupante é saber se, no caso dos conflitos de Cité Soleil, a religião seria a instituição social ideal para desempenhar um papel de mediação? Como a teoria de mediação tal como definida pela Convenção da Haye de 1907 e tratada por vários autores poderia ajudar na situação de Cité Soleil se ela fosse utilizada? Para permanecer no assunto que estamos tratando e não perder o fio condutor das ideias, preferimos acentuar-nos na primeira questão, enquanto a segunda será abordada na parte seguinte da tese que tratará da resolução dos conflitos. Um documento preparado por um grupo de religiosos reunido na Suécia intitulado Tools for Peace: The role of religion in conflict tem alguns elementos interessantes suscetíveis de nos ajudar a ter uma resposta à primeira pergunta. Neste documento lemos o seguinte:
In such encounters religious communities can find ways both to prevent conflicts and to minimise violence when conflicts appear (...) We were concerned with the double role we can perceive when religion is used sometimes to raise or stirup conflicts and at other times to prevent or stop violent actions (CHRISTIAN COUNCIL OF SWEDEN et al., 2004, p. 4).
Além de sublinhar que realmente a religião é um catalisador de violência e conflito, esta citação a apresenta também como um ator social importante na prevenção desses fenômenos assim como na mediação e conciliação das partes. Os valores religiosos indevidamente explorados, a defesa da diversidade religiosa são geralmente fontes das tensões sociais, mas, é em cumprindo esta mediação que a religião poderá valorizar respeitosamente seu papel social na sociedade. Não lhe cabe de intervir autoritariamente no conflito, porque a mediação é sobretudo objeto de escolha ou de convite que as partes direcionam a uma pessoa ou uma instituição, tal escolha ou convite se baseia na confiança e no respeito que elas têm nela. A mediação exige a neutralidade, um dos sete princípios sagrados de mediação propostos por Pekar Lempereur, Colson e Salzer (2008, p. 61-81). Fazendo chamada essencialmente à intervenção de um terceiro[9] ator, que pode ser um indivíduo (num quadro microsocial) ou uma instituição, a igreja, por exemplo, (num quadro macrossocial), a mediação exige também notoriedade, capacidade e imparcialidade deste terceiro a levar as partes rivais a um terreno de diálogo e de comunicação.

No caso de Cité Soleil, os conflitos envolvem grupos de acerca 50 indivíduos e não pessoas individuais, portanto, trata-se de uma violência a dimensão coletiva. A religião não conseguiu desempenhar um papel de mediação a propriamente falando, ela abraçou de preferência um papel milenarista, ritual, litúrgico e messiânico como habitualmente. A religião falhou neste papel por causa da dimensão coletiva dos conflitos neste bairro e das tentativas de saída individualistas, por ser uma instituição que, através do mundo, está perdendo credibilidade e confiança na sociedade, mas, principalmente, por não receber nenhum convite de mediação pelos beligerantes. Todavia, se, pela mediação direta, ela não conseguiu conciliar os grupos armados em conflito, pela meta-mediação ela não deixou os conflitos armados acabar com sua estrutura social e suas atividades. De maneira indireta, suas mensagens da paz social e da não violência, aparentemente, fossem ouvidas[10] se for preciso considerar que, desde fim de 2015, o município está conhecendo uma pacificação das violências coletivas e uma autoneutralização dos grupos armados.

Pelo que sabemos, a religião nunca foi uma mediadora nos conflitos em Cité Soleil,  porque durante esses eventos ela não foi solicitada pelas partes que concordariam lhe mandar um convite como instituição de confiança. Isso significa então que ela não podia intervir nesses conflitos de maneira autônoma, autoritária e unilateral na medida em que a mediação é um ato deliberativo e livre das partes. Ao não convidar a religião, uma instituição que, supostamente, é sempre vista como neutra, ou qualquer outra instituição como mediadora, significa que os grupos beligerantes não quiserem restaurar entre eles suas relações sociais, ao contrário, eles quiserem permanecer inimigos ou separados[11]. Uma religião precisava ter o acordo desses grupos para agir como mediadora.

Apesar de saber que a religião é uma instituição que sempre promove a paz social, a conciliação e a não violência, é difícil achar na história contemporânea dos grandes conflitos sociais um exemplo de instituição religiosa escolhida ou convidada a ser um terceiro entre as partes beligerantes. As duas Guerras Mundiais mergulharam a humanidade numa violência infinita, mas, infelizmente, não existia nenhuma mediação religiosa que podia impedi-las ou pará-las. Na Colúmbia, um conflito armado permaneceu mais que cinquenta anos entre as FARC e o exercito governamental, causou muitos danos humanos e materiais, mas nunca ouvimos que algumas igrejas foram solicitadas a mediar uma mesa de debate para acabar com esta tragédia humana do mundo contemporâneo. Enfim, no Rio de Janeiro, onde, como em Cité Soleil, é a lei das gangues que prevalece, a intensidade das guerras entre traficantes de drogas e policia militar demonstra que a possibilidade para que uma entidade religiosa seja escolhida como mediadora está se reduzindo cada dia.

A situação não era diferente em Cité Soleil onde, apesar dos conflitos, as atividades religiosas continuaram funcionando. Em algum momento tivemos a sensação de que o papel moral da religião está sendo comprometido, desacreditado e contestado na comunidade, talvez, por causa do aumento e da repetição das violências religiosas no mundo ou do terrorismo religioso. No entanto, se este papel de mediação era de aplicação difícil para a religião em Cité Soleil, para uma grande parte da sociedade a instituição religiosa permanece uma força moral e um ator social relevante para promover a paz e ajudar a resolver os conflitos que, amiúde, têm raízes sociais, políticas, culturais e econômicas. Vamos ver agora como e por que a religião pode ser um ator importante nos fenômenos de conflitos e violências, capaz de ajudar na construção da paz. Cité Soleil será nessas considerações um caso prático.

Se, segundo a própria definição da mediação, o papel desempenhado pela religião nos fenômenos de conflitos e violências em Cité Soleil não pode ser considerado como tal, ora a religião ela mesma nunca foi inativa nesses fenômenos, então devemos achar um jeito de explicar sua participação. Sugerimos chamar este papel uma meta-mediação para não falar de uma mediação indireta que consistiria em desempenhar, implícita e discretamente, um papel de conciliadora pelo meio das mensagens, predicações e evangelizações que conservam seu caráter litúrgico e messiânico. Pelo que entendemos no princípio da mediação, a religião – como qualquer outra instituição – teria uma única maneira de intervir na resolução dos conflitos: por solicitação. Porém, tecnicamente, não foi isso que ocorreu, ou seja, na prática, a religião nunca foi publica ou abertamente solicitada por um grupo armado ou por uma entidade exterior aos conflitos para desempenhar um papel de mediação. Resta que, fora deste padrão, a religião transcendeu, ultrapassou este papel e agia de maneira automática, que seria para ela uma expressão de autonomia e de liberdade de se envolver nas questões sociais, uma maneira de gozar plenamente do seu direito de se posicionar abertamente através dos seus órgãos de comunicação social, e de tentar conciliar indiretamente as partes por seus discursos moralistas, éticos e pacíficos.

Neste contexto, a religião se concede automaticamente a prerrogativa de se comportar como uma instituição privilegiada da sociedade que se sente, psicologicamente, transtornada e afetada, e, socialmente, concernida pelos problemas sociais, políticos, econômicos e culturais. Sem solicitação, é, neste caso, o automatismo da religião que cabe, ou seja, a capacidade de intervir indiretamente nos conflitos sem precisar ter sido convidada. É isso que queremos chamar a meta-mediação, isto é, uma mediação que não é propriamente dita uma mediação tradicional como definida acima, que não entra no formato técnico e profissional da mediação, mas uma mediação que transcende a mediação em si, que vai além dos princípios da mediação tanto nas ações como nos resultados, que ultrapassa a questão do tempo e do espaço, por fim, que, sem intervenção física, mas por suas palavras e seus discursos, consegue atingir os grupos sociais. Assim, como ela não é formalmente chamada por nenhum grupo rival para ser uma grande mediadora nesses conflitos, então a religião tem a possibilidade de se envolver neles como uma meta-mediadora sem ser uma mediadora ou uma conciliadora tecnicamente nomeada, nesse sentido suas mensagens da paz social, da justiça, da não violência e da conciliação constituem sua única arma de combate que poderia atingir, sem distinção nem discriminação nem exclusão, todos os grupos em conflito. Para isso, o conteúdo das mensagens bíblicas muda e as estratégias de evangelização se concentram neste fenômeno social.

Esta ação tem uma finalidade mais conciliadora e pacífica que mediadora. Ora, se a religião fosse solicitada por uma das partes em conflito para intermediar suas diferenças – um papel mais institucional e formal – o cenário seria muito diferente. Agindo como mediadora, ela ajudaria na facilitação das soluções. Porém, percebemos que este papel que chamamos meta-mediação é eminentemente social na medida em que participa mais amplamente da mobilização social dos recursos físicos e humanos da igreja, ele não tem fronteiras e, além disso, é transcendental e universal. Ele parece responder à exigência mínima de toda mediação: neutralidade e imparcialidade, acrescentando a isso a universalidade. A mensagem religiosa neutra, imparcial e conciliadora, sem polêmicas e fanatismo, é  mais acessível aos grupos beligerantes que qualquer outra entidade política. Se a religião constitui uma força social capaz de mobilizar pessoas – onde estiveram – tanto pela violência e intolerância quanto pelas ações carismáticas, caritativas e humanitárias, ela pode também aproveitar desta mesma capacidade mobilizadora para ajudar os grupos em conflito a ter a paz e a se reconciliarem. Em outras palavras, diferentemente das outras instituições, a religião tem a vantagem de ser  uma instituição de mediação e de conciliação inata através das suas mensagens que atingem todas as camadas sociais. E, se mediar é ser neutro e estimular os grupos rivais a chegar a um acordo abandonando suas violências, a religião já é automaticamente uma mediação.
Um dos fatores que obstruem a potencialidade da religião como mediadora nos conflitos de Cité Soleil é a tendência de abordá-los só no ângulo político ou econômico em termos de causas ou consequências, como se só os elementos políticos e econômicos fossem mais importantes que os outros, assim, o aspecto religioso é negligenciado ou esquecido. Isso não faz com que o religioso se encontra em todos os conflitos sociais, mas uma politização exagerada dos mesmos acaba amiúde paralisando e obstruindo a faceta religiosa que, como vimos, desempenha um papel significativo por ser um ator influente e presente na comunidade de Cité Soleil. Em outras palavras, o elemento religioso foi negligenciado por razões políticas e interesses individuais. Esta tendência de menosprezar o religioso nos conflitos apesar da sua relevância é contemporânea, e é Katherine Marshall, uma dos raros autores a falar disso, que chamou nossa atenção sobre isso dizendo: “Someone did a survey of over 1,000 academic articles on conflict, and only three had given systematic attention to the role of religionˮ (MARSHALL, [1990?], p. 1). Esta falta de atenção não significa, no entanto, que a religião está totalmente ausente. Só que seu papel não chama atenção das pessoas como no caso dos conflitos armados em Cité Soleil. Ela está presente, só que alguns analistas acham sua presença irrelevante, então não a problematizam muito. Contudo, esta ideia recebida está errada, pois alguns crentes que entrevistamos reconhecem na religião um papel de terapia social, de recurso coletivo quando a população se sente totalmente abandonada pelo governo e pela polícia nos momentos violentos. Não é porque alguns líderes religiosos se envolvem nas violências ou as violências religiosas são frequentes que faz com que a presença da religião no processo de resolução dos conflitos é irrelevante. Na prática este argumento não cabe, porque não são todas as religiões nem todos os líderes religiosos que são promotores da violência e da intolerância. A citação seguinte nos dará razão:
Religious leaders have a special role to play in both perpetrating and preventing violent conflict. This is because the religious beliefs, values, and practices held by the mainstream in a society are an expression of their basic worldview, a manifestation of assumptions about what exists outside the narrow confines of everyday experience (CHRISTIAN COUNCIL OF SWEDEN et al., op. cit., p. 7).

Claro que as religiões não são as únicas instituições capazes de desempenhar um papel de mediação e de conciliação, as organizações de defesa dos direitos humanos, os movimentos transnacionais e secularistas, algumas associações sociais e culturais podem fazer a mesma coisa, senão estaríamos caindo num certo moralismo religioso dos conflitos sociais, e, embora seja uma instituição interessante e tão poderosa, a religião se encontraria contestada no papel da resolução dos conflitos por fazer parte da causalidade do fenômeno. A mediação dos conflitos – sobretudo no ambiente social do trabalho – é uma questão institucional que necessita da presença de instituições laicas e jurídicas sem pertencimento religioso ou ideológico capazes de administrar e assumir corretamente este papel. Estamos falando do aparato da justiça (no altamente institucional), das famílias, dos clubes, dos comitês comunais (nível sociocomunitário) que seriam encarregados de não somente resolver os conflitos, mas também preveni-los, a fim de criar na sociedade uma cultura de resolução jurídica e amigável dos conflitos acabando com a prática de esconder os problemas. Prevenir os conflitos é criar previamente um órgão competente encarregado de atuar neste sentido. Prevenir faz parte de uma escolha individual e dos esforços coletivos.

Therefore, to prevent is to participate in an interactive system of human relations in which decisions will – more frequently than not, more commonly than not, more effectively than not – reduce the level of violence, the risk of its use and/or minimize its consequences. Prevention necessitates communication, connection, and a willingness to correct the negative and to celebrate the positive, respectfully, persistently and openly (Ibidem, p. 17).

A mediação do conflito não se improvisa, uma coisa que se prepara, se organiza, então não adianta conceder este papel a uma instituição que, dificilmente, será capaz de manter a neutralidade e a imparcialidade e de se livrar dos preconceitos. Na verdade, embora a religião possa, reservadamente, desempenhar este papel isso não implica que é muito qualificada para cumpri-lo. Os conflitos ou as violências em que ela intervém efetivamente como mediadora ou conciliadora são muito raros como já sublinhamos em cima. O que significa que, hoje, o papel da religião nas violências sociais e conflitos coletivos – seja como mediadora ou pacificadora – está se desprezado, em outras palavras, ela é percebida como uma parte do problema do que um instrumento de solução.

Os argumentos aqui não se referem a uma iniciativa da religião de impedir os conflitos e as violências que, lembrando Marx, são inerentes ao ser humano e fazem parte da natureza humana, e, como disse Simmel, são úteis e até necessários pela dinâmica da sociedade e pelas mudanças sociais. Pois, sabemos que não existe nenhuma instituição capaz de fazer isso. Mas, trata-se de sublinhar que o caso de Cité Soleil acaba de ensinar-nos que a melhor maneira pela religião de ser uma conciliadora nos conflitos e violências é continuar a predicar a paz social, a vulgarizar seus discursos sobre valores culturais, normas sociais, ética, humanidade e identidade entre as massas populares desfavorecidas, a permanecer a instituição ideal que consegue abordar com parcimônia as questões complexas deste mundo, como, por exemplo, fé e medo, morte e vida, bem e mal, liberdade e fatalidade, sagrado e profano etc., que transtornam a mente humana, e, por fim, a disponibilizar seu espaço aos indivíduos em busca de refugio e consolação por causa do acontecimento dos conflitos.

É exatamente neste ângulo que o papel da religião nos conflitos armados em Cité Soleil se faz famoso e vulgarizador das mensagens de pacificação. É que neste último aspecto, a religião ajuda mais, indiretamente, por atividades religiosas, campanhas evangélicas e programas sociais a pacificar ou a neutralizar as violências ficando no lado das vítimas. As campanhas de evangelização e de pentecotização da comunidade de Cité Soleil durante este período foram dirigidas a este respeito e seus impactos foram observados em dois ângulos: afluência maciça dos indivíduos para as igrejas protestantes e resistência das igrejas ao fenômeno dos conflitos armados. É verdade que os conflitos armados afetam o funcionamento das igrejas, e, se algumas fossem obrigadas a fechar momentaneamente suas portas, era por medida de precaução e de prudência, não por causa de medo e de ameaça. Assim, por paradoxal que isso pareça, os conflitos constituem um elemento de fortalecimento da religião.

Todavia, esta situação descritiva não é geral, ela varia de uma igreja a outra segundo sua capacidade de resistir[12], de encorajar seus membros e de reforçar suas atividades. Nos inquéritos parciais em Cité Soleil observamos que as igrejas constituíram, durante os períodos de grandes turbulências sociais, de violências coletivas generalizadas e de transtornos políticos entre 2004-2006, o espaço social de veiculação de mensagens de esperança, paz e reconciliação. Embora reduzido em termos de quantidade, ele permaneceu do ponto de vista qualitativo a força das vítimas no qual elas reorganizam sua vida social. Assim, gostaríamos de enfatizar o desenrolamento dessas observações cujos alguns elementos precisam chamar atenção no que diz respeito ao papel pacificador da religião.
A primeira observação concerne o comportamento de resistência e de permanência de algumas confissões religiosas – adventistas, pentecostais, católicas e vodu – que, apesar dos conflitos, não abandonaram a cidade aos criminosos. Elas conseguem se adaptar às novas realidades sociopolíticas que se apresentam e transformar o espaço religioso em um lugar de reconforto social para acompanhar as pessoas. Ao resistir ao que podemos chamar, entre 2003-2007, uma tragédia social, algumas igrejas demonstraram que elas são realmente um centro de reconforto social para a população em aflição e em busca de refugio, um lugar onde as pessoas podem reconstituir suas relações sociais e respirar um ar de paz e de tranquilidade. Numa entrevista que realizamos com um líder importante de Église Chrétienne des Cités, sobre o que a igreja fez como ação para ajudar a solucionar os conflitos, ele apontou o seguinte:

O papel da igreja é pregar as palavras de Deus, realizar cruzadas e evangelizar as pessoas nas ruas para que Deus possa transformar as pessoas. Entrei nos bairros mais difíceis, abordei os bandidos armados, alguns ouviram, mas outros declaram que não têm tempo por este negócio. O papel da igreja é pregar a paz, tanto quanto há guerra não pode ter paz e a igreja não pode transformar. (Entrevista com diácono Dovaine Chery, 21/05/2017).
Um pastor desta mesma igreja –  que requereu o anonimato – declarou que ela nunca parou de funcionar embora de um lado os números de cultos semanais fossem reduzidos por razão estratégica e auto-conservação a fim de não esgotar os recursos humanos e bens materiais, as frequentações diminuem consideravelmente do outro lado[13]. Um mesmo líder de Église Chrétienne de la Sainteté disse a mesma coisa. Verificamos que, efetivamente, nos períodos de grandes conflitos de 2004 a 2011, as igrejas se tornaram o espaço de predileção das pessoas para se manterem na harmonia e na coesão, o no qual, além de todas as aflições, seus elos sociais se retecem. Essas relações sociais dos fiéis entre si e destes com o resto da comunidade são revitalizadas neste espaço social de ambiente conciliador e acolhedor que representam as igrejas tanto católicas como protestantes. As igrejas como as perístoles foram transformados em um lugar de efervescência coletiva e de terapia social, o que quer dizer que as pessoas acreditam no que está passando neste espaço para superar os momentos difíceis que representam os conflitos armados. Nas igrejas elas esperam uma vitória para seus problemas. Assim, em período de conflitos armados, podemos dizer que a arena religiosa – muito solicitada, isto não em referência às quantidades de pessoas que a frequentam, mas em referência à sua capacidade de se adaptar às novas realidades sociais neste bairro – constitui o símbolo da resistência. A permanência das atividades religiosas e a resistência das igrejas ajudam muito as pessoas a viver as realidades, a acreditar num futuro melhor e a ter coragem e força para enfrentar as situações difíceis.
Uma segunda observação leva em consideração os elos que os bandidos desenvolveriam com a instituição religiosa, sua participação direta ou indireta nas atividades religiosas. Com efeito, apesar de não poder verificar este elemento, alguns líderes influentes das bandas armadas passadas já eram membros de uma igreja ou nasceram de uma família religiosa ou eram alunos de uma escola religiosa ou frequentavam uma igreja mais precisamente. Era, por exemplo, o caso daquele chefe chamado Ti Yonèl, que, nos anos noventa e dois mil, comandava a localidade de Bois Neuf. Segundo algumas pessoas, ele era um membro influente de uma igreja chamada Église de Dieu le monde pour Christ, situada na localidade de Bois Neuf. Acredita-se também que, nos anos noventa, Covington, o criminoso que reinava em Boston, zona sul de Cité Soleil, era membro de Église Matthieu 16, Dread Wilmer em Projet Drouillard, nos anos 2003, frequentava Église Chrétienne des Cités. Mas, os casos de Labanière e Evens ti kouto são particulares na medida em que um pastor de Église Matthieu 16 em Boston nos contou numa entrevista concedida em 16 de maio de 2017 que esses bandidos se acostumavam a frequentar sua igreja cada domingo. Além disso, em algumas ocasiões eles apoiavam alguns programas desta igreja. Segundo um inquérito da organização humanitária italiana, AVSI, realizado entre 2010 e 2013, vários jovens que se tornaram bandidos e criminosos na comunidade de Cité Soleil pertenciam a uma família de cultura religiosa e receberam na sua infância, adolescência ou juventude uma educação religiosa. Alguns, embora envolvidos nas atividades criminosas e participassem clandestinamente nos atos de banditismo, continuam a frequentar as igrejas e beneficiaram da cumplicidade das suas famílias.
Em terceiro lugar, não podemos esquecer o respeito reverencial dos bandidos para os líderes religiosos e os lugares de culto, sua atitude sacramental em frente dos símbolos religiosos e dos dias de atividades religiosas, em particular, o domingo. O profundo respeito dos bandidos não apenas para os lugares de culto: Igrejas, templos, mosquetas e outros, mas também, para os atores religiosos (pastores, padres, houngans etc.) e para os dias das atividades religiosas (sobretudo domingo ), constitui um elemento cultual e ritual que impedia moralmente aos grupos armados irem atacar e violar o espaço religioso. Até para os bandidos mais intolerantes e irreligiosos, este espaço permanece sagrado e inviolável. Três coisas, talvez, possam explicar as razões desse sentimento de respeito que facilita a religião divulgar suas mensagens de paz e de desenvolver sua meta-mediação. Primeiro, a sacralidade da igreja e dos seus símbolos, segundo, a neutralidade dos líderes religiosos e, terceiro, a participação social das igrejas nas ações comunitárias na coletividade em que os grupos armados evoluem.
Do outro lado, a atitude dos bandidos em frente dos símbolos religiosos é também interessante na medida em que observamos que alguns acostumavam a levar com eles símbolos religiosos como cruz (muito usada na religião católica), lençol vermelho (um símbolo autêntico do vodu), rosário etc. O mais frequente e visível é o lençol vermelho. Na opinião popular, as pessoas acreditam já ter visto bandidos fazer gestos mágicos com lençóis vermelhos, rosários e cruz ou participar das cerimônias voduícas de interpelação dos espíritos de proteção como Legba e Ogou Feray nos dias que precedem os conflitos. Se não foi possível verificar que, realmente, todos os bandidos usavam um símbolo religioso nos conflitos armados, eu, pessoalmente, vi várias vezes Dread Wilmer com um lençol vermelho atrás do bolso da sua calça ou amarando sua cabeça, quando eu morei em Projet Drouillard, que era seu feudo onde ele estabeleceu sua dominação banditista. Uma vez, ele o tirou do seu bolso e o passou no seu rosto que estava soando. Segundo algumas pessoas este chefe de grupos armados servia Erzulie Dantò, o que explica então sua crueldade.
Este gesto pode parecer muito simplista para alguns, enquanto para um haitiano ele tem muita significação, porque no vodu cada cor usada – amarelo, branco, roxo ou vermelho[14] – está acompanhada de uma significação mística e tem um valor mágico. Em geral, o branco designa os deuses tranquilos e calmas do rito Rada, que salvam e curam como Damballah Ouèdo, enquanto o vermelho é para os deuses cruéis do rito Petro, capazes de matar como Erzulie Dantò. O lençol vermelho simboliza assim a proteção, a possessão mística e o serviço desta última loa. Na sociedade haitiana, a presença do vermelho – símbolo de sangue – materializado pelo lençol ou representado por um laço ao redor da cintura ou do pescoço inspira não só medo e crueldade, mas também a possessão ou o serviço de uma loa. A porta dos símbolos religiosos não traduz uma guerra santa nem uma dominância religiosa, mas a proteção dos espíritos em que acreditam aqueles bandidos. Além disso, por causa das atividades religiosas, o domingo é um dia sagrado para os grupos armados pararem suas confrontações, então, as possibilidades de acontecer confrontações armadas entre eles naquele dia são muito fracas. Domingo constituiu assim um dia de pacificação, de tranquilidade e de reconforto que as pessoas que fugiram os conflitos aproveitavam para visitar sua família, ver seus amigos e fazer outras coisas. Mas, se, ao longo do tempo, o dia domingo perdeu totalmente seu caráter sagrado, principalmente entre 2012 e 2016, o espaço religioso continua conservando sua sacralização apesar da degenerescência do fenômeno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para concluir, gostaríamos de ressaltar que, além do que foi dito sobre a presença do vodu nas atitudes dos bandidos, há um elemento interessante a sublinhar porque tem um papel marcante: os amuletos. O uso dos amuletos se faz, na opinião popular, após os chefes de bandas armadas terem consultado um houngan e invocado o deus vodu da guerra Ogou Feray. O objetivo é experimentar o ritual místico de imunização contra as balas. Diz-se que o indivíduo tem um zumbi ou um «point» que lhe impede ser atingido por balas. Os conflitos são um momento ideal para testar o truque místico a fim de constatar se ele funciona ou não. Dread Wilmer, Labanière, Ti Yonèl e vários outros eram vistos desta maneira porque usava um lençol vermelho como amuleto. O processo que levaria à imunização mística contra as balas pode ser muito longo e muito complicado.
É uma dimensão socioantropológica do fenômeno que abordamos com um houngan – que deve permanecer anônimo – numa entrevista em 1º de abril de 2017. Segundo ele, esta prática existe efetivamente no vodu e é uma obra executada mais pelos houngans makout, que são servidores de «loas chauds» ou «loas méchants» representados pelo vermelho do que pelos houngans asogwe que se conectam com os «loas doux» ou espíritos do bem simbolizados pelo branco. Ademais, se os bandidos se acostumassem a solicitar dos houngans este tipo de serviço, eles o fariam fora da sua própria comunidade para guardar o segredo da proteção mística. Uma das condições para conseguir e conservar esta força mística é não matar, e, o que leva os bandidos a procurar este tipo de proteção é o medo de morrer e de ser baleado ou vencido pelo inimigo nas confrontações, acrescentou ele. Assim, se alguns dentre eles se aproximassem mais do vodu que as outras religiões é porque, espiritualmente, o vodu lhes faz sentir que são detentores de forças sobrenaturais que os tornam invencíveis.
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[1] Sobre os conflitos religiosos entre, de um lado, o catolicismo e a franco-maçonaria ver Hurbon (2004, p. 186-191) e, do outro, entre a religião católica e o estado haitiano pela hegemonia cultural e religiosa no Haiti (Idem., p. 159-192).
[2] As guerras de religião declaradas unilateralmente contra o vodu pelo catolicismo, «as famosas campanhas anti-supersticiosas», desde a Concordata de 1860 até a ocupação norte-americana são tratadas também por Nérestant (1994, p. 193-218; 123-136).

[3] Com o crescimento do protestantismo no Haiti e o aumento dos novos movimentos religiosos, saber, os pentecostais e os evangélicos, o catolicismo passou, respetivamente, de 84 % a 80,3 % de 1950 a 1982 para atingir hoje 55 % da população. Desde os anos 1990, e mesmo antes, assistimos um crescimento exponencial e desorganizado das igrejas protestantes nos bairros populosos e a conjugação deste movimento com os programas sociais e humanitários. O que lhes permite atingir uma quantidade maior  de pessoas nas zonas desfavorecidas e marginalizadas.
[4] O exercito celeste é um movimento religioso rebelde oriundo do protestantismo presente tanto no Haiti como na diáspora. Apesar de sofrer diminuição e transformação, ele está ainda muito presente nas localidades com condições sociais e econômicas muito precárias. Para ter mais conhecimento sobre assunto ver André Corten (2001, p. 102-105).
[5] Para um conhecimento mais detalhado e um estudo mais aprofundado sobre o protestantismo haitiano ver Pressoir, Catts. Le protestantisme haïtien. Tome 1, 2 e 3. Port-au-Prince: Fardin, 2016.
[6] Porque o objetivo aqui não é fazer uma história sociológica do protestantismo e das outras religiões, mas chegar a compreender seu contexto social de implantação e seu papel que elas desempenhariam no fenômeno de conflitos armados e violências coletivas em Cité Soleil.
[7] Segundo alguns autores como, por exemplo, Micial Nérestant, Rénald Clérismé, perante seu fracasso de impedir a proliferação do culto vodu na sociedade haitiana, a igreja católica tem abandonado de caçar o vodu. Ela entrou, então, num processo de compreensão e de pesquisa do vodu.
[8] Ver o capítulo La réglementation anti-superstitieuse aux Antilles In Pluchon, Pierre. Vaudou, sorciers, empoisonneurs: De Saint-Domingue à Haïti. Paris: Karthala, 1987, p. 57-69.
[9] O terceiro que, em algumas circunstancias é o personagem chave da resolução dos conflitos, não supõe só a mediação. Ele desempenha também o papel de arbitragem e de conciliação (CARRÉ, 2013, p. 171-172). A intervenção do terceiro é a prova que demonstra que o conflito atinge sua dimensão social.
[10] Alguns líderes religiosos com quem conversamos neste município se orgulharam de que, após algumas semanas de jejuns, de orações, de evangelizações e de predicações, os conflitos armados cessaram. Para eles, os bandidos ouviram a voz de Deus através das mensagens bíblicas da igreja. Mas, é bom também ouvir alguns dentre eles falando das suas dúvidas nesta paz encontrada entre os grupos armados. Muitos ignoram sua origem e duvidam do seu futuro. Uma secção da terceira parte da tese será consagrada à  problematização mais aprofundada do processo da paz de 2015 em Cité Soleil.
[11] No contexto atual da pacificação da cidade, os grupos armados permanecem não totalmente inimigos, nem necessariamente amigos, mas estritamente separados, controlados e contidos. Este aspecto será problematizado mais quando analisaremos a parte relativa ao processo da paz que se iniciou em Cité Soleil no fim de 2015.
[12] Quando estivermos falando da capacidade de resistir da igreja, estamos nos referindo a três elementos: recursos humanos, recursos materiais e variação nos programas sociais e religiosos.
[13] Sim, durante todos os conflitos (estou falando dos últimos três anos, por exemplo, em 2004 as frequentações diminuíram consideravelmente e chegamos a 500 pessoas), a situação da frequentação da igreja é muito variável. Quando não têm mais conflitos, a quantidade aumenta e vice versa. Entre 2009 e 2010 a frequentação aumentou se tornando normal e atingindo pelo menos 1 000 pessoas. Em dezembro de 2010, a igreja se reuniu com mais que 2 500 pessoas, pois, como você sabe, após o terremoto algumas pessoas perderam suas igrejas, vieram se refugiar em Cité Soleil e começaram a frequentar nossa igreja. Mas, quando a situação começou a se tornar normal, algumas pessoas começaram a voltar pra sua casa, sua igreja, seu bairro, a quantidade começou a diminuir. Os conflitos de 2013 afetaram muito a igreja. por que nos momentos de turbulências Cité Soleil é como uma zona de transição: O indivíduo está passando, mas não fica definitivamente, ele está lá provisoriamente, mas quando encontrar outra oportunidade ele vai embora. O que faz com que a quantidade da igreja seja muito instável. Por exemplo, em dezembro do ano passado (em janeiro 2016), a igreja chegou a 700 e 750 pessoas como frequentação porque os conflitos estavam piorando. Era um dos níveis mais alarmantes que a igreja nunca atingiu. Porém, uma vez que a situação volta pela normalidade, as frequentações começaram a aumentar e, em dezembro do mesmo ano, chegamos a 1 200 pessoas pelo menos (Entrevista com pastor Profaite Médeus, 08/04/2017).
[14] O roxo é geralmente usado nas cerimônias dos mortos na honra do loa da morte, Guédé, nos dias 1 e 2 de novembro. O amarelo designa uma variedade de deuses como, por exemplo, Loko Atissou, Lebga, Jean Dantor etc.