A META-MEDIAÇÃO DA RELIGIOSO NOS
CONFLITOS ARMADOS EM CITÉ SOLEIL
THE
META-MEDIATION OF RELIGIOUS IN THE ARMED CONFLICTS IN CITÉ SOLEIL
RESUMO
A palavra meta-mediação é formada por nós a partir
do sufixo mediação para caracterizar
o aspecto religioso que se esconde atrás dos conflitos armados em Cité Soleil. O prefixo meta significa alguma coisa superior ou
que vai além do que é esperado. Ela foi inspirada para explicar como as
igrejas, pelo evangelismo e pentecôtismo, pela neutralidade e pela resistência,
conseguem ajudar indireta e positivamente a agir sobre este fenômeno sem intervenção
física? Este artigo, que faz parte de uma tese em andamento, tem
por objetivo de caracterizar e ressaltar a dimensão religiosa dos conflitos armados em Cité Soleil. Ele é dividido em duas partes cuja primeira trata do universo socioreligioso haitiano e a segunda do papel da religião neste
fenômeno.
Palavras-chave: Conflito. Religião. Mediação. Cité Soleil.
ABSTRACT
The word metamediation is formed by us from the suffix mediation to characterize the religious aspect that hides behind the armed conflicts in Cité Soleil. The prefix meta means something superior or that goes beyond what is expected. It has been inspired to explain how churches, by evangelism and pentecostalism, by neutrality and resistance, can indirectly and positively help to act on this phenomenon without physical intervention? This article, which is part of an ongoing thesis, aims to characterize and emphasize the religious dimension of the armed conflicts in Cité Soleil. It is divided into two parts whose first deals with the Haitian socioreligious universe and the second of the role of religion in this phenomenon.
Keywords: Conflict. Religion. Mediation. Cité Soleil.
INTRODUÇÃO: A NATUREZA
RELIGIOSA DOS CONFLITOS ARMADOS EM CITÉ
SOLEIL
É
importante começar por entender que, do
ponto de vista religioso, os
conflitos armados e as violências coletivas em Cité Soleil não são um
conflito religioso nem uma guerra de religião. O papel da religião, como vamos
ver mais adiante, é estritamente moral e social. A fim de dissipar toda
dúvida a este respeito, é fundamental sublinhar que o aspecto religioso nos
conflitos armados e nas violências coletivas em Cité Soleil não traduz
uma violência étnico-racial ou política com raízes religiosas. Além disso, de
maneira geral, as principais confissões religiosas existentes (protestantismo,
catolicismo e vodu) que coabitam neste bairro não desempenham neste fenômeno
social nenhum papel doutrinal ou confessional de alimentação, de
instrumentalização ou de instigação. A comunidade de Cité Soleil não está lidando com grupos armados reivindicadores ou
defensores de um ultranacionalismo religioso cego e radical ou de uma ideologia
religiosa extremista ligada a uma dentre essas religiões acima mencionadas. Certo,
conflitos religiosos toda sociedade já enfrentou e a sociedade haitiana não é
isenta desta situação[1].
Também guerra clássica de religião, Haiti já passou por esta etapa entre o fim
do século XIX e início do século XX quando o catolicismo estiver perseguindo
ferozmente o vodu[2].
Mas, como vamos desenvolver mais adiante, o caso de Cité Soleil é de
outra natureza.
Três
razões fundamentais provocaram nossa curiosidade em abordar o papel da religião
nos conflitos armados e nas violências coletivas em Cité Soleil.
Primeiro, a constatação da permanência das atividades religiosas, segundo, a
resistência e a adaptação da religião a este fenômeno, e, terceiro, a afluência
das pessoas paras as igrejas vistas por elas como espaço de reconforto social.
Embora esquecido, ignorado ou menosprezado, vamos ver que o elemento religioso
tem sua importância e está realmente presente neste fenômeno. Trata-se de
compreender, na perspectiva sociológica, como a religião – entendida aqui como
crença individual e estrutura institucional – se posicionou e conseguiu
resistir às situações conflituosas e violentas que se desenvolveram neste
bairro nos últimos quinze anos. Este interesse não se manifesta porque se trata
de conflitos religiosos, Mas de conflitos sociais nos quais o religioso
intervém de maneira diferente em comparação ao padrão tradicional.
Ao
observar este fenômeno, constatamos que o elemento religioso se manifesta de
duas grandes maneiras. Num primeiro tempo, pela sua dimensão social e
institucional que consiste nas evangelizações e na organização de campanhas de
proximidade e de sensibilização que conseguem fazer das igrejas o melhor espaço
de convivência social e de solidariedade
social para os membros da comunidade. Atraídas pelos indivíduos em busca de
reconforto social as igrejas se tornaram um símbolo de resistência na comunidade e um refúgio
principalmente para as vítimas. Em segundo lugar, há a manifestação individual
e coletiva da fé religiosa que se traduz pela constância e perseverança dos
crentes nas atividades religiosas não demonstrando nenhum medo para frequentar
suas congregações apesar dos conflitos e das violências que se pioraram. Com
efeito, se os conflitos armados diminuem a frequência da participação dos fies
nos cultos e reduzem consideravelmente tanto a quantidade dos cultos dominicais
e semanais quanto o número dos crentes, eles, no entanto, não conseguiram
aniquilar as práticas e as atividades religiosas nesta cidade.
Na
ausência de uma base epistemológica e teórica sobre o fenômeno que estamos
estudando, partiremos das nossas investigações empíricas que permitirão
sustentar três hipóteses suscetíveis de explicar este caráter inabalável e
inflexível da religião. Primeiro, a religião beneficiou de um respeito
particular na comunidade de Cité Soleil, ganhou a confiança da população,
e, por causa disso, ela se tornou uma voz importante a ser ouvida. Este
particularismo não é devido a uma crença ou à categoria dos atores religiosos,
mas ao medo dos indivíduos nas coisas sagradas e à confiança na ajuda social
que a instituição religiosa fornece. Segundo, os conflitos inter-grupos armados
que provocam grandes fluxos de êxodo social interno não visam objetivamente as
igrejas e suas atividades, e, mesmo se eles as afetem direta ou indiretamente,
eles concernem exclusivamente os grupos sociais armados rivais neles
envolvidos. Por fim, em terceiro lugar, o elemento mais importante, a religião
sempre conserva seu papel de neutralidade trabalhando no sentido da justiça, da
paz e da ajuda social sem intervir em favor ou contra um grupo. Isso lhe
garante prestigio, confiança e respeito para sua arena assim como para seus
atores.
Assim,
embora pouco problematizada e quase invisível, a religião sempre foi um ator
crucial, ativo e presente nos conflitos armados e nas violências coletivas em Cité
Soleil. Ao lado principalmente das vítimas, ela sempre se oferece como alternativa
de reconforto social, de terapia social e de consolação porque nela as famílias
se reconstituem, os amigos se encontram e as pessoas ressentem algum sentimento
de segurança. Esta presença – como será destacado mais adiante – não se encaixa
no padrão tradicional em que, ela, a religião, pode ser ora instigadora ou
instrumento do conflito ora intermediária entre as partes em conflito. Ela se
refere de preferência a um outro tipo mais complexo que, estando além deste
padrão tradicional, exige outra reflexão e explicação. Este exercício será
possível de acordo com as observações sociológicas e os estudos empíricos que
realizamos a partir dos quais viremos que a religião foi realmente um espaço de
consolidação da vida social e de resistência. Nesse sentido, dividimos o artigo
em duas partes. Enquanto a primeira tratará do universo socioreligioso haitiano
a segunda analisará a meta-mediação da religião neste fenômeno.
1.
CARACTERIZAÇÃO DO UNIVERSO SOCIORELIGIOSO HAITIANO
Apesar
do decrescimento que sofreu nos últimos 30 anos, o catolicismo[3]
permanece ainda hoje a religião predominante no Haiti onde, segundo as últimas
estimações de IHSI (2015), 55 % dos indivíduos se declaram praticantes desta
religião. O protestantismo – uma religião em rápida ascensão – reagrupa as
confissões como Baptista, Metodista, Adventista, Pentecostal e Igreja Episcopal
com 28 % de crentes. Os sem religião não
ultrapassam 10 % enquanto o vodu ganha em total só 2,1 % de declarantes. As
outras confissões religiosas como Franco-Maçonaria, Testemunhos de Jeová,
Islamismo e Mórmons representariam a todas elas ao menos 3 %. Todavia, precisamos tomar essas estatísticas
com cuidado por causa das relações confusas em termos de ritos que existem
entre Franco-Maçonaria, vodu e catolicismo.
Em
Cité Soleil, a partir de um
levantamento superficial da Prefeitura, o protestantismo lidera com 310 igrejas
em todos os seus vertentes. É a religião dominante neste bairro. Há, além
disso, 7 igrejas católicas, 56 templos vodu e 2 mosquetas. A hegemonia do
catolicismo está se enfraquecendo e isso teria a ver com as rivalidades
religiosas ocorridas com o franco-maçonaria, com o protestantismo e ao surgimento
de novos movimentos religiosos, a saber, os pentecostais, os evangélicos e o
exército celeste[4],
por exemplo. Todas essas confissões religiosas de inspiração protestante e de
denominação cristã se implantam, geralmente, nos bairros populosos e pobres como
Cité Soleil, onde as demandas sociais
em matéria do bem religioso são muito presentes. Elas se envolvem também nos
programas comunitários, humanitários e caritativos. Assim, cada uma dessas
religiões que constituem o sistema religioso haitiano tem uma caracterização
social peculiar que vamos abordar sucintamente não na ideia de fazer uma
historicização completa delas, mas no objetivo de o leitor ter um conhecimento
suficiente da maneira de que é constituído o universo socioreligioso haitiano.
1.1.O
catolicismo
Sabemos
que a religião católica tem uma longa história no Haiti que, infelizmente,
começou com a escravidão a partir da colonização espanhola em 1492. Ela tem,
além disso, a característica de uma religião transportada que pertence a um
sistema de dominação e que foi imposta aos dominados. O Código Negro publicado
pela França em 1685 proibiu todo outro culto que não seja católico e fiz do
clérigo católico a principal administradora do pretendido processo de
humanização e de civilização dos escravos. Aquele processo deveria passar,
inevitavelmente, pelo catolicismo erigido como a religião da colônia francesa
de Santo Domingo. E, mesmo se tivesse um conflito entre o clérigo e os
proprietários dos escravos por causa do ensino religioso e das práticas religiosas,
na colônia francesa de Santo Domingo, a igreja católica tinha a prerrogativa
cultural de educar, batizar e converter os escravos oriundos da África a fim de
que estes se tornem muito gentis aceitando a escravidão como uma generosidade
de Deus e o catolicismo como uma marca civilizadora. Portanto, as relações
entre a administração colonial e a igreja católica não eram sempre harmoniosas,
ocorreram alguns conflitos porque para os proprietários dos escravos a
evangelização, o ensino religioso, os batismos, as predicações, tudo isso
despertou na mente do escravo um sentimento de liberdade que poderia levar à
rebelião, tal sentimento é muito perigoso pela sobrevivência da colônia
(PRESSOIR, 1945, p. 13-14). É por isso que:
Peu
de planteurs admettaient des religieux sur leurs terres: les uns par crainte de
voir leur cruauté et leurs moeurs dissolues dénoncées du haut de la chaire, les
autres par une méfiance plus ou moins consciente de l´esprit révolutionnaire
contenu dans les principes évangéliques (MÉTRAUX, 1958, p. 27).
Querer
ou não, a implantação do catolicismo no Haiti colonial coincide fortemente com
a formação da igreja católica como potencial apoiadora da escravidão sem negar,
no entanto, que alguns padres católicos eram contra a escravidão em si e sustentaram
os escravos nas suas lutas pela liberdade. Desta maneira, a revolução haitiana
não é unilateralmente a obra do vodu no plano religioso, mas, apesar de tudo, a
do cristianismo em geral, do catolicismo em particular (HURBON, 2004, p.
105-110). Se a administração colonial constituiu o motor que faz virar a
maquina política e econômica da colônia, o clérigo católico era responsável
pela educação social e cultural dos escravos, é melhor dizer pela domesticação
mental e pela coisificação dos escravos. Dito de outra maneira, enquanto a
instituição colonial se preocupa da parte física do escravo, a igreja católica
cuidava da parte espiritual, psicológica e mental. Se, além disso, a
administração colonial havia por papel a gerência das coisas materiais da colônia,
a igreja católica tinha de gerir as coisas imateriais, a saber, o espírito e a
alma do escravo pelo catequismo. Enfim, podemos concluir que a igreja católica
e a administração colonial se entenderam para compartilhar o escravo como um
objeto em duas partes iguais, e, desde início, a igreja católica influencia as
decisões políticas no Haiti. É claro que ela exerça esta influência com a
cumplicidade dos dirigentes haitianos, mas ela tem também uma origem.
É
um assunto por causa da sua amplitude que não pode ser abordado aqui, então que
mereceria um estudo crítico mais aprofundado e separado. Contudo, é importante
entender que o caráter apolítico da religião católica está sempre na teoria. Na
prática ela exerce controle enorme sobre o aparato do Estado orientando sua
política interna e externa. A história do Haiti nos ensina que a igreja
católica exerceu uma pressão de ferro sobre o Estado haitiano para que este
aceite o catolicismo como religião oficial e combate o vodu como culto
demoníaco a fim de que o país seja civilizado e apto a entrar na modernidade
ocidental. Esta pressão se cumpre no âmbito da adoção, em 28 de março de 1860,
de uma concordata que, ao definir as relações politico-religiosas entre Igreja
católica e Estado haitiano, tem consagrado à religião católica um poder quase
plenipotenciário muito criticado. Segundo Micial Nérestant (1994), uma
concordata é um instrumento jurídico concluído, assinado e ratificado entre o
Saint-Siège e um Estado soberano e que trata particularmente das questões religiosas.
Ela é de mesmo valor que um tratado comum, só que nela o Saint-Siège age como
uma instituição spiritual e atemporal que trata com um Estado físico-soberano e
temporal. Portanto, a concordata é um tratado de natureza politico-religiosa no
qual as duas partes se concordam sobre seus direitos e deveres em matéria
religiosa. Existem, assim, três eventos maiores na sociedade haitiana de lembrança
das relações político-religiosas entre o Estado haitiano e a igreja católica: a
assinatura da concordata de 1860 e as duas campanhas anti-supersticiosas contra
o vodu em 1898 e 1942.
A
concordata era só uma espécie de formalidade, porque desde a colonização, a
igreja católica dominou o monopólio de educação, de cultura, de religião e
beneficiou de muitas vantagens econômicas. Este monopólio nunca foi alterado,
embora tenha sofrido algumas modificações. O desenvolvimento das ajudas
humanitárias e dos programas sociais da igreja católica a torna uma instituição
cada vez mais importante que se aproxima mais das camadas sociais esquecidas
pelas políticas públicas do governo. Com efeito, até o fim dos anos noventa as
ações e intervenções sociais e caritativas da igreja católica se direcionaram às
populações desfavorecidas das zonas rurais onde as missões católicas – mais
tarde as missões protestantes – têm um acesso mais fácil do que o próprio
Estado haitiano.
É
por isso que, apesar do poder totalitarista de Duvalier, da ferocidade e
crueldade do seu regime, a superpotência da igreja católica sobre a educação, a
cultura e a religião permanece intacta, porque como fino observador das
realidades sociopolíticas, ele sabia que precisava da igreja católica para
satisfazer alguns desejos da população, particularmente, em matéria de
educação, de registro do nascimento, de saúde etc., nas comunidades rurais que
permanecem inalcançáveis para o Estado haitiano. O que significa que a igreja
católica é um ator muito importante para o Estado haitiano na medida em que ela
lhe ajuda a cumprir os papéis que ele mesmo é incapaz de fazer. Ou seja, a
fraqueza do Estado haitiano, que se traduz pela corrupção e pelas rivalidades
políticas internas constitui uma força para a igreja católica. Assim, sem
esquecer alguns centros de saúde, as melhores escolares de ensino primário e
secundário, os centros de alto nível de formação universitária e profissional
do país pertencem à igreja católica. O que faz com que, além das suas
implicações frequentes nas questões políticas do país, a igreja católica é uma
instituição muito socialmente engajada nas comunidades mais vulneráveis.
No
entanto, algumas modificações ocorreram na religião católica quando, primeiro,
o regime duvalierista decidiu usar o catolicismo como arma política, segundo,
quando o protestantismo chegou ao Haiti e começou a fazer concorrência com o
catolicismo se espalhando rapidamente nos meios sociais onde o catolicismo já
se implantou há muito tempo. Como já vimos, Duvalier modificou o clérigo
católico que, anteriormente, era totalmente branco e estrangeiro. Por alhures,
mesmo se não vamos entrar no debate das rivalidades entre protestantes e
católicos nem fazer uma sociologia do protestantismo no Haiti, é importante
sublinhar duas particularidades que diferenciam o catolicismo do
protestantismo: uma linguagem de massa e a rápida adaptação do protestantismo
às realidades sociais existentes. Porque, embora presente nessas zonas, a
igreja católica nunca conseguiu apagar nas mentalidades populares a ideia de
que o catolicismo é uma religião elitista e de classe, que, dificilmente, fala
as linguagens dos pobres e se coloca ao seu nível para compreender seus
problemas e lhes fazer esquecer seus sofrimentos cotidianos. Em outras
palavras, apesar da sua antiguidade, o catolicismo tinha uma enorme dificuldade
de garantir aos indivíduos uma integração social. Foi exatamente o que fez o
protestantismo. Por fim, se a linguagem da religião católica era como mágica
para as massas incultas e analfabetas, os protestantes utilizam um linguagem
popular muito acessível, compreensível e que corresponde exatamente ao que
essas massas desejavam.
1.2.A
chegada do protestantismo ao Haiti
Como
o catolicismo, o protestantismo é igualmente uma religião implantada na
sociedade haitiana no século XIX. Ele foi também proibido pelo Código Negro não
somente no Haiti colonial, mas também nas todas as colônias francesas. Este
código interdisse também toda forma de manifestação religiosa na colônia e os
escravos não tinham direito de se reunir qualquer seja a razão. O
protestantismo haitiano[5],
em particular, tem uma história fascinante que começou efetivamente quando, em
1817, após a conquista da independência, o presidente do sul e oeste do Haiti,
Alexandre Pétion, aceitou receber uma missão metodista. A respeito disso
Laënnec Hurbon disse:
Cet
accueil chaleureux et les contacts subséquents déterminent l´attente de Pétion qui espère que les
missionnaires protestants pourront desservir, non à des fins sectaires
mais par humanisme, les besoins pressants de la nouvelle République dans le
domaine de l´éducation.
Les missionnaires fondent une école influencée par la méthode Lancastérienne. Ils visitent
la population des principaux centres du sud de la péninsule et suscitent
un grand intérêt. Ils prêchent et catéchisent en français et en créole devant des foules, atteignant parfois des centaines
de personnes, dans les montagnes surplombant Port-au-Prince. Leur message est sévère: on doit
abandonner fétiches,
amulettes, sortilèges et droit coutumier; «la fornication et l´adultère», ainsi que le
travail le dimanche sont dorénavant condamnés. On incite le peuple à changer radicalement
sa façon
de vivre (HURBON, 2000, p. 96)
Citamos
aqui o sociólogo haitiano para ter uma ideia suficiente[6] da
maneira de que, historicamente, o protestantismo se implantou no Haiti, qual
foi a natureza da sua mensagem e, por fim, em que setor de atividade social ele
ia intervir. Vemos que, realmente, é um movimento religioso que chegou ao país
com muita determinação, energia, perspicácia, e, o mais importante, com uma
mensagem evangélica muito radical que consiste em uma espécie de metamorfose
social total daqueles que são considerados como pecadores. Esta radicalidade
data dos conflitos doutrinais relativos principalmente à autoridade do papa e
ao purgatório, que, durante a reforma, opuseram na Europa, no século XVI, os
católicos e os ortodoxos. Os primeiros missionários protestantes que chegaram
ao Haiti eram os Metodistas Britânicos e em seguida os protestantes
estadunidenses, a maioria era imigrante fugindo a segregação racial e a
escravidão no sul dos Estados Unidos.
Até
a ocupação norte-americana, em 1915, só existiam no Haiti alguns 3 000
protestantes (HURBON, 2000, p. 95). Comparando seus primeiros passos com o
avanço do catolicismo no país, podemos considerar que o desenvolvimento do
protestantismo haitiano de raízes britânica e estadunidense foi um pouco lento.
Esta lentidão não dizia respeito só ao protestantismo haitiano, os avanços de
algumas igrejas protestantes americanas como Protestant Episcopal Church foram também afetados. Contudo, após ter superado as
dificuldades sociais, culturais, políticas e econômicas, ele começou a se
tornar uma religião muito importante na sociedade haitiana e sua expansão nos
anos sessenta sob diversas vertentes foi espetacular. O protestantismo em si
tem muitas fontes. Da versão alemã – seu berço – até às igrejas reformadas da
América passando pelas igrejas reformadas da França e da África, a versão
protestante que chegou ao Haiti sofreu muitas modificações (PRESSOIR, 2016, tome
1, p. 38-52). E, apesar da influência do protestantismo francês no plano
intelectual e cultural, o protestantismo haitiano se encontra, em geral,
marcado pelas fontes inglesas e americanas (Ibidem, p. 53).
A
lentidão do desenvolvimento do protestantismo desde sua aparição até o início
do século XX pode ser explicada pelo contexto social e político muito agitado
por sucessão de governos ilegítimos e de regimes ditatoriais, pelos golpes
militares frequentes, pelas barreiras políticas e pelos conflitos com a igreja
católica (HURBON, 2000, p. 97-99). Mas, se o protestantismo e o catolicismo se
opuseram do ponto de vista doutrinal e teológico, ambos se juntam nas lutas
contra o vodu. Pois, vimos claramente na citação em cima que, sem nomear
explicitamente o vodu, mas alguns elementos a serem achados só no vodu como
amuletos e feitiços, o protestantismo vem para completar ou continuar a missão
da religião católica[7]: a
caça do vodu. Ora, após muitos fracassos, a igreja católica tem abandonado este
papel e se consagrou a outras tarefas mais intelectuais e científicas. “Depuis
le Concile Vatican II, dit Clérismé, cependant il y eut un changement
d´attitude, l´Église catholique se montre plus compréhensive, plus tolérante et
même cherche à comprendre le Vodou de l´intérieur (CLÉRISMÉ In HURBON, 2000, p.
223)”. Elemento importante do cristianismo, o protestantismo hoje se mostra, em
maioria das suas vertentes, cada vez mais radical a respeito do vodu que a própria
igreja católica no passado.
Segundo
algumas pessoas, os protestantes representariam hoje 60 % da população haitiana.
É perigoso acreditar neste percentual – embora o protestantismo tenha conhecido
um crescimento exponencial nos anos oitenta – por causa do fanatismo religioso
e das incertezas estatísticas que o caracterizam. Este problema estatístico é
devido tanto a uma desordem total do ponto de vista estrutural da organização
do setor religioso como a uma falta de controle institucional pelo governo do
funcionamento das religiões no território nacional. Ou seja, não há um controle
sistemático da criação das igrejas protestantes que estão crescendo de qualquer
maneira. O ministério dos cultos que deveria cumprir este papel parece estar
ultrapassado por este fenômeno social de pululação das igrejas protestantes. O
que engendra um déficit de confiança e de credibilidade para o protestantismo
haitiano, cuja principal reclamação desde início é um tratamento igual à igreja
católica.
As
estatísticas do IHSI segundo as quais 28 % da população haitiana é protestante
nós parecem mais confiáveis e razoáveis considerando as margens de erro, porque
se trata da única instituição nacional especializada neste assunto e capaz de
realizar um trabalho de inquéritos mais sério a este respeito. Ela mesma
enfatiza que a expansão muito rápida do protestantismo desde 1980 houve por
consequência a regressão do catolicismo na sociedade, tal progressão foi caracterizada
pelas estratégias dinâmicas de evangelização e de proselitismo do
protestantismo e, além disso, pelo surgimento de novos movimentos religiosos
dentro do próprio protestantismo que, através do mundo, é visto como uma
religião rebelde às doutrinas do cristianismo. O crescimento vertiginoso do
protestantismo no Haiti coincide muito com o período em que o país estava
contando suas inúmeras fases de ditadura (civil e militar) até o acontecimento
do duvalierismo.
1.3.O
vodouismo como fundamento social do Haiti
O
vodu haitiano à semelhança do candomblé brasileiro é de raízes africanas (Benim
e Congo), ou seja, um produto social dos escravos africanos que foram vendidos
pelos seus semelhantes africanos e transportados para Santo Domingo. E, mesmo
se alguns dentre eles já tenham conhecido o cristianismo e o islamismo, eles
permaneceram agarrados à sua cultura africana. A palavra vodu vem do termo
beninês vodoun, que significa
espírito e divindade. Na existência do vodu tal como criado na colônia de Santo
Domingo, há, em particular, dois momentos históricos que marcam mais sua
visibilidade como religião popular. De um lado, as associações noturnas dos
escravos com dimensão sociopolítica e religiosa cuja mais importante – ocorrida
em 14 de agosto de 1791 – foi chamada Cérémonie
du Bois Caïman, e, de outro lado, os momentos em que o vodu tinha que
enfrentar as perseguições da igreja católica e dos protestantes. Ambos nunca
param de assimilar o culto do vodu ao fetichismo, satanismo e diabolismo.
Com
efeito, esta reunião tinha um caráter solene na medida em que ela devia marcar
a consagração do vodouismo como verdadeira religião popular dos negros e levar
à revolução social tão esperada. Era um evento social, cultural, político e até
místico que não escapa à atenção da maioria dos historiadores haitianos embora
as versões se diferenciem. Nele o vodu
era como uma força coletiva que animou toda a associação dos escravos (MÉTRAUX,
1958, p. 34-48). Para Ardouin era uma manifestação coletiva crucial na vida dos
escravos para não somente conquistar sua independência, mas sobretudo para
formar uma nação, enquanto Madiou viu nesta reunião uma espécie de luta racial
que traduz o desejo de uma banda de negros africanos com sede de liberdade.
Quando os escravos rebeldes se esconderam nas montanhas afastadas era no
objetivo de, em primeiro lugar, fugir a escravidão e os tratamentos cruéis e
desumanizantes dos colonizadores, em segundo lugar, celebrar livremente seus cultos
vodus longe dos olhos dos mestres e, por fim, se reunir clandestinamente para
discutir seus planos. É por isso que ela constitui um dos resultados da prática
do quilombola e não é por acaso que ela ocorreu no período noturno, que era um
tempo fatídico para os escravos. Eles aproveitaram sempre deste momento para se
descansar, envenenar seus mestres, passar às ações mais difíceis e compartilhar
entre eles as noticias sobre a situação da França.
Certo,
esta reunião era perigosa e importante para os escravos, mas ela não era a
primeira nem a última que eles concretizaram nos períodos noturnos. Embora
interditas pelas autoridades coloniais, as reuniões noturnas entre os escravos
eram uma maneira de desafiar a autoridade dos cólons e de permanecer conectados
– em perigo da sua própria vida – com os espíritos do vodu. A noite
representava o melhor momento em que os escravos contam entre eles tudo que os
transtorna na colônia, conseguem refletir para ver como conspirar contra os
mestres. Além de ser uma das manifestações raramente públicas do vodu, esta
reunião tem uma dimensão extraordinária porque foi nesta noite que os escravos
tomaram a decisão mais importante de se rebelar com os brancos e de acabar com
a escravidão (SAINT-LOUIS, 2006). Ela tem um caráter especial porque traduz a
manifestação socioreligiosa mais intensa das culturas africanas desde a criação
da colônia, a união dos escravos na qual eles se sentiram investidos pelo
sentimento de liberdade e pelos espíritos dos ancestrais, o momento simbólico
para valorizar seus cultos vodus. Em resumo, esta cerimônia noturna era um
grande momento de efervescência coletiva, pois, não apenas a noite era sempre
para os escravos uma expressão de liberdade, mas esta reunião é a prova da
força social que os escravos simbolizavam na colônia.
Essas
particularidades não significam que o culto vodu foi autorizado. Como já
dissemos, durante a colonização, a única religião permitida era o catolicismo
e, vistos como manifestação demoníaca, diabólica e como um paganismo, o vodu e
toda prática ligada a ele eram ferozmente caçados pela igreja católica[8].
Era, portanto, quase impossível a prática de qualquer outro culto religioso. A
interdição do vodu não se restringe só ao período colonial, ela se estendeu até
depois da independência, sobretudo durante a ocupação norte-americana. Todavia,
o vodu devia ser praticado ao redor da colônia, nas montanhas onde se
esconderam os escravos quilombos, e se espalhar clandestinamente entre os
escravos das plantações e domésticos dentro da colônia com, sem dúvida, a cumplicidade
dos escravos quilombos. Apesar das interdições, nada impediu que a colônia francesa
mais prospera do mundo seja contaminada pelo culto vodu, e esta contaminação
religiosa é, em grande parte, o fruto das ações dos escravos quilombos. Pela
igreja católica, o vodu constitui um problema de desenvolvimento social para os
haitianos lembrando que, após a independência, ela conseguiu, apesar de tudo,
conservar sua hegemonia religiosa a tal ponto que até nos anos 80 quase 90 % da
população haitiana se dizia católica. Então, a proclamação da independência não
acabou com a clandestinidade e a marginalização do vodu, mas o faz entrar numa
fase que Fridolin Saint-Louis chama semiclandestinidade.
(...)
Aujourd´hui encore, dit-il, il (le vaudou) vit dans une semi-clandestinité,
même s´il a reçu une reconnaissance constitutionnelle. Il fait toujours partie du non-dit dans le discours
public de la majorité de la population, tout en étant très présent au niveau
des représentations et des pratiques. Mais en même temps, on ne peut oublier qu´il
a aussi été porteur des résistances contre l´esclavage et contre tout ce que
fut, dans l´histoire, le système économique d´exploitation du noir (SAINT-LOUIS,
2000, p. 7).
Nesse
sentido, a porcentagem de 2,1 % do vodu encontra sua explicação sociológica no
que é compreendido como um falso reconhecimento e visto como uma misturação social
dos cultos vodu, cristão, católico e protestante. Esta misturação está oriunda
do destes dois fenômenos sociais chamados assimilação e imitação que data da
época colonial em que o escravo era submergido num mundo social escravagista
essencialmente dominado pelo cristianismo. Se, de um lado, o escravo tinha na
colônia uma vida social dominada pela servidão e domesticação, do outro lado
sua vida religiosa até sua existência inteira eram agitadas tanto pelos
princípios cristãos que pretendiam humaniza-lo e civiliza-lo quanto pelos cultos vodus que o inspiram um valor
diferente: a liberdade. As conversões forçadas, as relações ao mesmo tempo
harmoniosas e conflituosas entre o vodu e o catolicismo antes e depois da
escravidão, as opressões que este culto sofreu e, por fim, a falha do processo
de educação católica forçado, são dentre os principais fatores que explicam
como e por que o vodu se assimila e imita legitimamente o cristianismo. Além disso,
os primeiros contatos dos escravos com o cristianismo ocorreram desde na África
e tiveram impactos tão fortes sobre sua vida como as sequelas permanecem
inesquecíveis. O vodu imitou o cristianismo para poder sobreviver e se
fortalecer (NÉRESTANT, 1994). Esta imitação e misturação, que existem ainda
hoje, mas muito subtil, significam que a catolicização assim como a
protestanticização dos vodouisant nunca foi completa.
Falando
disso, entre o século XIX e XX, o nível de educação dos vodouisants compelidos
a se converter ao catolicismo nunca foi aprimorado, pois, nas zonas rurais, nos
Lakou, eles continuam
auto-conservando e praticando seus rituais voduícos. Isto é devido à decadência
dos padres católicos corruptos e se explica pelo fato de que o peso de
dominação da igreja católica começou a se deteriorar e pelo afeto dos
vodouisants à cultura africana. As perseguições dos adeptos do vodu por causa
do seu pertencimento religioso os levam não a negar voluntariamente o vodu, mas
a fingir e fortalecer sua fé religiosa para ressurgir com mais forca e
determinação. Como disse Hurbon nas margens do seu célebre livro, Les mystères du vaudou, em parte, as
perseguições e repressões serviram ao vodu a ser mais resistente, forte e
permanente. A imitação pelo vodu dos cultos cristãos participa também desta
resistência. É dizer, em outras palavras, que as represálias eram uma espécie
de benção para o vodu (HURBON, 1993, p. 68; MÉTRAUX, 1958, p. 58).
A
migração forçada e não voluntária dos vodouisants para o protestantismo e seus
movimentos corolários participa também deste processo de misturação que, ao
contrário do que foi atendido, não é um abandono das práticas voduícas, mas uma
recomposição mista entre ritos vodus e cristãos. Segundo Hurbon, ritos, festas,
cerimônias, calendário litúrgico do vodu são uma imitação do cristianismo. O
excelente estudo de Alfred Métraux sobre o natal no vodu haitiano dá para
perceber ao mesmo tempo imitação e originalidade (1958, p. 201-216). As
campanhas de conversão forçada e de destruição dos objetos vodus dos anos
oitenta, muito denunciadas e criticadas nas imprensas internacionais e na
sociedade haitiana, eram percebidas como uma re-colonização do país. Mas, era
um fiasco, pois, no fundo, os santos da igreja católica já tinham migrado para
o vodu tomando outros nomes. Por exemplo, Legba, chefe dos portões no panteão
vodu, é a figura emblemática de Santo Pedro no catolicismo; Saint Jacques le Majeur é encarnado por Ogou
Batala ou Ogou Feray e assim por diante. O que significa que as relações entre
vodu e catolicismo são ainda intrínsecas. Desta forma, não seria exagerado
falar na sociedade haitiana de um vodu católico ou de um catolicismo voduíco.
Contudo, a ideia aqui não era definir o vodu a partir do cristianismo, mas
mostrar que o vodu, como toda religião a parte inteira, foi também influenciado
por outras religiões com as quais ele estava em contato.
Há
duas dimensões sociais na manifestação do vodu que devemos sublinhar. Primeiro,
o vodu é considerado como a essência da cultura popular dos haitianos antes e
após a conquista da independência e da liberdade, ou seja, um cimento social
que conecta as massas e lhes concede uma identidade social, uma religião que
permanece imanente às práticas sociais e aos hábitos sociais deles. Em segundo
lugar, o vodu é uma religião de resistência que consegue expressar
perfeitamente as calamidades, os sofrimentos, as dores psicológicos e sociais
do haitiano e que lhe lembra de sua ancestralidade. Assim, o vodu é um culto ao
qual recorre o haitiano em aflição e em busca de dimensão mística, espiritual e
mágica para ter sucesso no plano sentimental, social, político ou econômico.
O
etnólogo, Jean Price-Mars, é um dos famosos intelectuais haitianos – senão o
primeiro – que tenha atraído nossa atenção sobre a profundeza social, cultural
e religiosa do vodu. Seu famoso livro, Ainsi
parla l´oncle (1928), um verdadeiro hino não só ao vodu, mas à cultura
africana em geral, um dos estudos mais completo sobre o vodu, defende a tese
segundo a qual o vodu constitui a essência da vida cultural cotidiana dos
haitianos e a base da construção social da sociedade haitiana. Para ele, as
raízes haitianas são africanas e o vodu é este elemento que nos permite voltar
para a África se precisarmos saber quem somos realmente, Não precisa discutir
inutilmente se o vodu é uma religião ou não, o doutor Price-Mars já resolveu
esse problema sustentando três aspectos racionais suficientes – inspirados das Formas elementares de Emile Durkheim –
que explicam por que o vodu é uma religião como todas as outras. Com efeito, o
vodu tem seus próprios seres espirituais, seu corpo sacerdotal que administra
os cultos, os ritos e as coisas sagradas, sua própria cosmogonia que relata a
fundação do mundo e, por fim, sua própria teologia que explica as relações
entre as loas e os crentes (PRICE-MARS, 1928, p. 44-50). Tudo que se destaca em
baixo permite entender mais amplamente que o vodu é uma religião completa.
Le Vaudou est une religion parce
que tous les adeptes croient à l'existence des êtres spirituels qui vivent
quelque part dans l'univers en étroite intimité avec les humains dont ils dominent
l'activité. Le Vaudou est une religion parce que le culte dévolu à ses dieux
réclame un corps sacerdotal hiérarchisé, une société de fidèles, des temples,
des autels, des cérémonies et, enfin, toute une tradition orale qui n'est
certes pas parvenue jusqu'à nous sans altération, mais grâce à laquelle se
transmettent les partie essentielles de ce culte. Le Vaudou est une religion
parce que, à travers le fatras des légendes et la corruption des fables, on
peut démêler une théologie, un système de représentation grâce auquel,
primitivement, nos ancêtres africains s'expliquaient les phénomènes naturels et
qui gisent de façon latente à la base des croyances anarchiques sur lesquelles
repose le catholicisme hybride de nos masses populaires (PRICE-MARS, 1928, p.
45).
Na
escravatura mental, uma das funções do colonizador consiste em fazer tudo para
que o escravo possa negar, menosprezar, esquecer e discriminar sua própria raiz
social, cultural e identitária africana cujo vodu faz parte integral. Porém, o
colón não podia compreender que separar o escravo da sua terra natal não é
sinônimo de cortá-lo totalmente das suas raízes culturais e ancestrais, a
tarefa mais difícil. A negação do vodu é a negação da própria identidade haitiana,
pois ele é a alma do povo haitiano. Sem dúvida, o vodu com todos os seus
componentes (amuletos, tambor, imagens sagradas,, lençóis, etc.) é uma riposta
à escravidão, um mergulho na África, um hino, um refrão, uma melodia, uma
canção para superar as dores, enfim, o folclore da sociedade haitiana.
Lembramos que o vodu nasceu numa sociedade colonial com uma característica tabu
que permaneceu até hoje em alguns meios sociais e religiosos. É por isso que o
estudo de Price-Mars é interessante porque inicia o processo de tirar o vodu da
situação de interdito para colocá-lo numa dimensão de pensamento intelectual e científico
problematizando as raízes sociais e culturais do vodu e ressaltando sua
imanência à maneira de ser, sentir e agir de cada haitiano.
Seria
ininteligível acreditar que ele não tem sua própria moral, porque na sua
essência o vodu se ancora aos costumes e hábitos – principais fontes da moral –
dos haitianos sem esquecer que ele possui uma ética semelhante a qualquer outra
religião grande mundial. Ele permanece, portanto, a religião popular enraizada
na história social e cultural do país enchida de mistérios que ninguém vai
conseguir decifrar. A respeito disso, é bom retomar esta frase de François
Houtart prefaciando o livro de Saint-Louis:
Il
n´est donc guère facile de distinguer toutes les fonctions exercées par le
vodou tout au long de l´histoire haïtienne, car il est, à la fois, protestation
et expression festive, exaltation symbolique du monde de la nature et action
magique pour en contrecarrer les effets, facteur d´identité et de pouvoir
social. C´est dire que toute analyse du vodou est nécessairement un voyage au
coeur de la société (SAINT-LOUIS, op. cit., p. 7-8).
Gostaríamos
de concluir esta parte enfatizando o problema de auto-declaração do vodouisant
da sua fé religiosa. Para nós, ele é de ordem educacional, afeta o haitiano na
sua identidade, faz com que ele tem subestima de si mesmo e está à origem da consequência
da discriminação dos vodouisants na sociedade haitiana. Este problema demonstra
também que as sequelas das campanhas anti-supersticiosas segundo as quais o
vodouisant é um analfabeto que precisa ser civilizado e o católico uma pessoa
educada e civilizada que traz a civilização, não desapareceram. Muitos
vodouisants, chamados Les rejetés, sofreram
no interior do próprio catolicismo outras formas de discriminação racial e de
exclusão social, jamais nenhum dentre eles conseguiu alcançar um nível de
educação e de cultura elevado. Eles foram deixados na escala social mais baixa
e tratados como crentes do terceiro estado, porque sua educação religiosa foi
muito incompleta e corrupta. Assim, eles nunca conseguiram integrar-se na
comunidade católica nem alcançar um nível hierárquico adequadamente superior na
religião católica. Isto é causado pela falta de confiança da hierarquia
católica nas capacidades intelectuais desses novos adeptos oriundos do vodu,
pelo medo de ver o catolicismo corrompido pelos cultos vodus e pelo
conservadorismo religioso da igreja católica.
Por
fim, o medo que os adeptos do vodu têm para declarar e exibir sua fé se
expressa pelo que nós chamaríamos um quilombola religioso acompanhado de uma
perseguição religiosa silenciosa. Com efeito, o medo de serem criticados,
atacados e perseguidos, de sofrer represálias, leva muitos vodouisants a
aceitar não declarar sua pertença religiosa a fim de se autoproteger. A maioria
prefere dizer que é católica acrescentando o sufixo «não praticante». Agindo
desta maneira, eles estão dando razão aos preconceitos e sentimentos de
inferiorismo que Price-Mars chamou bovarismo
coletivo, em lugar do qual usaremos o termo bovarismo individual para falar de uma atitude individualista que
leva o indivíduo não a se ver e a se
aceitar como ele é exatamente, mas a se assemelhar com o outro. Infelizmente,
sem querer abaixar o nível espiritual, social e cultural vodu, o fato real é
que muitos vodouisants se veem como católicos, alguns como cristãos e outros
como protestantes. Na verdade, a tendência na sociedade haitiana, é que entre
um católico e um vodouisant não há muita diferença. No espírito ancestral, o vodu é uma religião de
autoproteção e de autoconfiança que inspira o haitiano a lutar e a resistir
contra as atrocidades e impiedades do sistema opressor, a não aceitar uma
sentença social pré-fabricada por ele por causa das suas origens sociais africanas.
2.
A
RELIGIÃO COMO META-MEDIADORA NOS CONFLITOS ARMADOS EM CITÉ SOLEIL
A
expressão meta-mediação, construída por
nós a partir do sufixo mediação é para
caracterizar o aspecto religioso que se esconde atrás dos conflitos armados em Cité Soleil. O prefixo meta significa alguma coisa superior ou
que vai além do que é esperado. Ela foi inspirada para entender a maneira de
que as igrejas, pelo evangelismo e pentecôtismo, pela neutralidade e pela resistência,
conseguem ajudar indireta e positivamente a agir sobre este fenômeno sem intervenção
física. Por sua vez, a palavra mediação tem dois sentidos. No passado, ser
mediador significava representar alguém para discutir e negociar em nome dele,
mas este sentido é menos usado há muito tempo. Ser mediador hoje é ter uma
posição neutra e imparcial entre as partes em conflito. Em outras palavras, se
no passado o mediador era, exclusivamente, um representante legal ou informal
de uma pessoa numa situação conflituosa, hoje ele é um personagem neutro
constituído pelas partes em conflito para lhes ajudar a resolver seus problemas.
No que diz respeito ao tema que estamos tratando, o primeiro sentido será
abandonado em prol do segundo. Por mediação entenderemos então um método
técnico, social e profissional de resolução dos conflitos criado no tempo e
espaço e conduzido por uma terceira pessoa chamada mediador. O nome mediador vem
do latim mediatus que traduz uma ação ou reação que, supostamente,
necessita a intervenção de um intermediário para ser realizada. Já que na
teologia cristã encontramos a figura de Jesus como mediador entre Deus e os
humanos, mas a palavra data de 500 antes J.-C e o papel de mediador se encontra
em cada religião. Um mediador intervém geralmente numa situação de conflito e
tem por responsabilidade de levar as partes a resolver seus problemas de
maneira autônoma e pacífica. Não vamos tratar integralmente do conceito de
mediação, mas precisamos nós interessar ao que apontam, sucintamente, alguns
autores sobre o assunto. Christophe Carré, primeiro, disse:
La médiation
fonctionne à peu près comme la
conciliation mais le médiateur n’est pas tenu
de rechercher une solution à tout prix. Son rôle est d’abord et avant tout de restaurer la communication, de faire en sorte que
les opposants entretiennent une relation plus pacifique en surmontant leurs antécédents.
Il s’efforce d’être réaliste,
concret et objectif (CARRÉ, 2013, p.
172).
Para
Christine Marsan, a mediação é a intervenção de um terceiro que traduz que os
protagonistas são ultrapassados pelo conflito, a situação social do conflito
está bloqueada, a solução amigável está no impasse. Nas páginas seguintes do
seu livro, a autora à semelhança de Christophe Carré elabora uma série de
regras que, resumidamente, tratam do contexto, da finalidade e do diagnóstico
da mediação (MARSAN, 2009, p. 84-92). Todavia, o estudo de Christophe Carré é
mais completo e apresenta uma visão global do que é a mediação do ponto de
vista conceitual, metodológico, etimológico e epistemológico.
Por
outro lado, o caráter sociológico relevante do estudo desses autores, é que a
intervenção do terceiro nos conflitos cria dois fenômenos sociais interessantes.
Primeiro, o início de um processo de reconstrução dos elos sociais entre as
partes. Este processo intervém a partir do momento em que os protagonistas
falharam nas suas tentativas de negociação. Em segundo lugar, temos um terceiro
que vai cumprir, sem pretensão de deter autoridade, uma função eminentemente
social que é a conciliação. Para Christophe Carré (2013), a conciliação é um
tipo de negociação assistida, uma continuação da negociação interrompida ou
falhada, enfim, o resultado da mediação. Em geral, o terceiro anima as
discussões e faz tudo para manter as partes numa posição de paz social sem
impor qualquer tipo de opinião nem influenciar a decisão delas. A meta de toda
mediação é levar as partes a achar seu próprio acordo, a resolver por si mesmas
seu próprio conflito na perspectiva de reconstituir as relações sociais entre
elas. Isso é o ideal de todo processo de mediação. Porém, a mediação será um
sucesso se uma das partes não enxergaria no mediador um personagem autoritário
e partidário.
Le médiateur n’est donc pas une
autorité : il ne tranche rien, n’impose pas, interdit
peu – et toujours pour garantir la liberté des parties. Il facilite, favorise,
encourage, motive. Son art est étrange :
les parties l’acceptent à leur table précisément parce qu’il n’a aucune autorité sur elles ; et c’est précisément
parce qu’il en est dépourvu que les parties, lorsque la médiation
aboutit, se reconnaissent pleinement dans l’accord qu’elles ont elles-mêmes
produit, avec le soutien du médiateur, et découvrent la force même du procédé (PEKAR
LEMPEREUR, COLSON e SALZER, 2008, p. 13).
A
tarefa de todo mediador consiste em propor às partes as melhores pistas que as
permitirão chegar sozinho a um acordo. Um objetivo muito delicado na medida em
que, de um lado, o desempenho do papel de terceiro está estritamente
condicionado pelos princípios da boa vontade das partes de permanecer na
discussão e, do outro lado, as partes têm que aprovar, reconhecer e legitimar
simultaneamente a presença do terceiro entre elas, senão um problema de
legitimidade arrisca surgir. Eis como Jean-Nicolas Bitter enxerga a
participação do terceiro num conflito:
Ainsi,
lorsqu´un tiers intervient dans un conflit pour proposer ses services aux
parties impliquées dans le but de les aider à trouver une issue à la crise, on
pourra considérer le pouvoir et le savoir-faire proposés comme neutres dans la
mesure où le fonctionnement et la dynamique sont clairement exposés aux
concernés, et que ceux-ci peuvent librement choisir d´accepter ou de refuser de
les appliquer. La conception de la neutralité envisagée dans le modèle dont il
est question ici ne rime pas avec «objectivité» (par rapport à des faits
donnés) ni avec «nécessité», comme c´est le cas dans une conception classique
de la «neutralité» (BITTER, 2003, p. 289).
O
autor colocou o dedo diretamente num dos obstáculos da mediação: o
individualismo, a identidade e a liberdade de cada uma das partes nele
envolvidas. Do ponto de vista sociológico, a mediação é um papel muito frágil,
difícil e complexo por causa ao menos da glorificação desses três valores que,
geralmente, estão à origem dos conflitos sociais. Com efeito, cada grupo social
tem sua própria personalidade individual a salvar, está sempre pronta a defender
sua identidade e, além disso, na base da sua liberdade, ele não é obrigado a
aplicar as conclusões da mediação. Ademais, temos que deixar claro que a
mediação não é uma resolução dos conflitos, mas um processo suscetível de levar
a esta dimensão. E, mesmo se as partes estivessem de acordo, o mediador não
pode ter a certeza absoluta de que a mediação será um sucesso no caso, por
exemplo, uma das partes, de má intenção, estiver chantageando. Assim, qualquer
seja o tamanho do conflito – individual, interpessoal ou coletivo – a
metodologia da mediação de priorizar diálogo, comunicação e conciliação entre
as partes e de colocá-las numa situação de autodecisão permanece a mesma.
Mas,
aqui, nossa interrogação preocupante é saber se, no caso dos conflitos de Cité
Soleil, a religião seria a instituição social ideal para desempenhar um papel
de mediação? Como a teoria de mediação tal como definida pela Convenção da Haye
de 1907 e tratada por vários autores poderia ajudar na situação de Cité
Soleil se ela fosse utilizada? Para permanecer no assunto que estamos
tratando e não perder o fio condutor das ideias, preferimos acentuar-nos na
primeira questão, enquanto a segunda será abordada na parte seguinte da tese
que tratará da resolução dos conflitos. Um documento preparado por um grupo de
religiosos reunido na Suécia intitulado Tools
for Peace: The role of religion in conflict tem alguns elementos interessantes suscetíveis de nos ajudar a ter uma
resposta à primeira pergunta. Neste documento lemos o seguinte:
In such encounters religious communities can find ways
both to prevent conflicts and to minimise violence when conflicts appear (...)
We were concerned with the double role we can perceive when religion is used
sometimes to raise or stirup conflicts and at other times to prevent or stop
violent actions (CHRISTIAN COUNCIL OF SWEDEN et al., 2004,
p. 4).
Além
de sublinhar que realmente a religião é um catalisador de violência e conflito,
esta citação a apresenta também como um ator social importante na prevenção
desses fenômenos assim como na mediação e conciliação das partes. Os valores
religiosos indevidamente explorados, a defesa da diversidade religiosa são
geralmente fontes das tensões sociais, mas, é em cumprindo esta mediação que a
religião poderá valorizar respeitosamente seu papel social na sociedade. Não
lhe cabe de intervir autoritariamente no conflito, porque a mediação é
sobretudo objeto de escolha ou de convite que as partes direcionam a uma pessoa
ou uma instituição, tal escolha ou convite se baseia na confiança e no respeito
que elas têm nela. A mediação exige a neutralidade, um dos sete princípios
sagrados de mediação propostos por Pekar Lempereur, Colson e Salzer (2008, p.
61-81). Fazendo chamada essencialmente à intervenção de um terceiro[9]
ator, que pode ser um indivíduo (num quadro microsocial) ou uma instituição, a
igreja, por exemplo, (num quadro macrossocial), a mediação exige também
notoriedade, capacidade e imparcialidade deste terceiro a levar as partes
rivais a um terreno de diálogo e de comunicação.
No
caso de Cité Soleil, os conflitos
envolvem grupos de acerca 50 indivíduos e não pessoas individuais, portanto,
trata-se de uma violência a dimensão coletiva. A religião não conseguiu
desempenhar um papel de mediação a propriamente falando, ela abraçou de
preferência um papel milenarista, ritual, litúrgico e messiânico como
habitualmente. A religião falhou neste papel por causa da dimensão coletiva dos
conflitos neste bairro e das tentativas de saída individualistas, por ser uma
instituição que, através do mundo, está perdendo credibilidade e confiança na
sociedade, mas, principalmente, por não receber nenhum convite de mediação
pelos beligerantes. Todavia, se, pela mediação direta, ela não conseguiu
conciliar os grupos armados em conflito, pela meta-mediação ela não deixou os
conflitos armados acabar com sua estrutura social e suas atividades. De maneira
indireta, suas mensagens da paz social e da não violência, aparentemente,
fossem ouvidas[10]
se for preciso considerar que, desde fim de 2015, o município está conhecendo
uma pacificação das violências coletivas e uma autoneutralização dos grupos
armados.
Pelo
que sabemos, a religião nunca foi uma mediadora nos conflitos em Cité Soleil, porque durante esses eventos ela não foi
solicitada pelas partes que concordariam lhe mandar um convite como instituição
de confiança. Isso significa então que ela não podia intervir nesses conflitos
de maneira autônoma, autoritária e unilateral na medida em que a mediação é um
ato deliberativo e livre das partes. Ao não convidar a religião, uma
instituição que, supostamente, é sempre vista como neutra, ou qualquer outra instituição
como mediadora, significa que os grupos beligerantes não quiserem restaurar
entre eles suas relações sociais, ao contrário, eles quiserem permanecer
inimigos ou separados[11].
Uma religião precisava ter o acordo desses grupos para agir como mediadora.
Apesar
de saber que a religião é uma instituição que sempre promove a paz social, a
conciliação e a não violência, é difícil achar na história contemporânea dos
grandes conflitos sociais um exemplo de instituição religiosa escolhida ou
convidada a ser um terceiro entre as partes beligerantes. As duas Guerras
Mundiais mergulharam a humanidade numa violência infinita, mas, infelizmente,
não existia nenhuma mediação religiosa que podia impedi-las ou pará-las. Na
Colúmbia, um conflito armado permaneceu mais que cinquenta anos entre as FARC e
o exercito governamental, causou muitos danos humanos e materiais, mas nunca
ouvimos que algumas igrejas foram solicitadas a mediar uma mesa de debate para
acabar com esta tragédia humana do mundo contemporâneo. Enfim, no Rio de
Janeiro, onde, como em Cité Soleil, é
a lei das gangues que prevalece, a intensidade das guerras entre traficantes de
drogas e policia militar demonstra que a possibilidade para que uma entidade
religiosa seja escolhida como mediadora está se reduzindo cada dia.
A
situação não era diferente em Cité Soleil onde, apesar dos conflitos, as
atividades religiosas continuaram funcionando. Em algum momento tivemos a sensação
de que o papel moral da religião está sendo comprometido, desacreditado e
contestado na comunidade, talvez, por causa do aumento e da repetição das violências
religiosas no mundo ou do terrorismo religioso. No entanto, se este papel de
mediação era de aplicação difícil para a religião em Cité Soleil, para uma
grande parte da sociedade a instituição religiosa permanece uma força moral e
um ator social relevante para promover a paz e ajudar a resolver os conflitos
que, amiúde, têm raízes sociais, políticas, culturais e econômicas. Vamos ver
agora como e por que a religião pode ser um ator importante nos fenômenos de conflitos
e violências, capaz de ajudar na construção da paz. Cité Soleil será nessas considerações um caso prático.
Se,
segundo a própria definição da mediação, o papel desempenhado pela religião nos
fenômenos de conflitos e violências em Cité Soleil não pode ser
considerado como tal, ora a religião ela mesma nunca foi inativa nesses
fenômenos, então devemos achar um jeito de explicar sua participação. Sugerimos
chamar este papel uma meta-mediação para não falar de uma mediação indireta que
consistiria em desempenhar, implícita e discretamente, um papel de conciliadora
pelo meio das mensagens, predicações e evangelizações que conservam seu caráter
litúrgico e messiânico. Pelo que entendemos no princípio da mediação, a
religião – como qualquer outra instituição – teria uma única maneira de
intervir na resolução dos conflitos: por solicitação. Porém, tecnicamente, não
foi isso que ocorreu, ou seja, na prática, a religião nunca foi publica ou
abertamente solicitada por um grupo armado ou por uma entidade exterior aos
conflitos para desempenhar um papel de mediação. Resta que, fora deste padrão,
a religião transcendeu, ultrapassou este papel e agia de maneira automática,
que seria para ela uma expressão de autonomia e de liberdade de se envolver nas
questões sociais, uma maneira de gozar plenamente do seu direito de se
posicionar abertamente através dos seus órgãos de comunicação social, e de tentar
conciliar indiretamente as partes por seus discursos moralistas, éticos e
pacíficos.
Neste
contexto, a religião se concede automaticamente a prerrogativa de se comportar
como uma instituição privilegiada da sociedade que se sente, psicologicamente,
transtornada e afetada, e, socialmente, concernida pelos problemas sociais,
políticos, econômicos e culturais. Sem solicitação, é, neste caso, o
automatismo da religião que cabe, ou seja, a capacidade de intervir
indiretamente nos conflitos sem precisar ter sido convidada. É isso que
queremos chamar a meta-mediação, isto é, uma mediação que não é propriamente
dita uma mediação tradicional como definida acima, que não entra no formato
técnico e profissional da mediação, mas uma mediação que transcende a mediação
em si, que vai além dos princípios da mediação tanto nas ações como nos
resultados, que ultrapassa a questão do tempo e do espaço, por fim, que, sem
intervenção física, mas por suas palavras e seus discursos, consegue atingir os
grupos sociais. Assim, como ela não é formalmente chamada por nenhum grupo
rival para ser uma grande mediadora nesses conflitos, então a religião tem a
possibilidade de se envolver neles como uma meta-mediadora sem ser uma
mediadora ou uma conciliadora tecnicamente nomeada, nesse sentido suas
mensagens da paz social, da justiça, da não violência e da conciliação constituem
sua única arma de combate que poderia atingir, sem distinção nem discriminação
nem exclusão, todos os grupos em conflito. Para isso, o conteúdo das mensagens
bíblicas muda e as estratégias de evangelização se concentram neste fenômeno
social.
Esta
ação tem uma finalidade mais conciliadora e pacífica que mediadora. Ora, se a
religião fosse solicitada por uma das partes em conflito para intermediar suas
diferenças – um papel mais institucional e formal – o cenário seria muito
diferente. Agindo como mediadora, ela ajudaria na facilitação das soluções.
Porém, percebemos que este papel que chamamos meta-mediação é eminentemente social
na medida em que participa mais amplamente da mobilização social dos recursos
físicos e humanos da igreja, ele não tem fronteiras e, além disso, é
transcendental e universal. Ele parece responder à exigência mínima de toda
mediação: neutralidade e imparcialidade, acrescentando a isso a universalidade.
A mensagem religiosa neutra, imparcial e conciliadora, sem polêmicas e
fanatismo, é mais acessível aos grupos
beligerantes que qualquer outra entidade política. Se a religião constitui uma
força social capaz de mobilizar pessoas – onde estiveram – tanto pela violência
e intolerância quanto pelas ações carismáticas, caritativas e humanitárias, ela
pode também aproveitar desta mesma capacidade mobilizadora para ajudar os
grupos em conflito a ter a paz e a se reconciliarem. Em outras palavras,
diferentemente das outras instituições, a religião tem a vantagem de ser uma instituição de mediação e de conciliação
inata através das suas mensagens que atingem todas as camadas sociais. E, se
mediar é ser neutro e estimular os grupos rivais a chegar a um acordo
abandonando suas violências, a religião já é automaticamente uma mediação.
Um
dos fatores que obstruem a potencialidade da religião como mediadora nos
conflitos de Cité Soleil é a
tendência de abordá-los só no ângulo político ou econômico em termos de causas
ou consequências, como se só os elementos políticos e econômicos fossem mais
importantes que os outros, assim, o aspecto religioso é negligenciado ou
esquecido. Isso não faz com que o religioso se encontra em todos os conflitos
sociais, mas uma politização exagerada dos mesmos acaba amiúde paralisando e
obstruindo a faceta religiosa que, como vimos, desempenha um papel
significativo por ser um ator influente e presente na comunidade de Cité
Soleil. Em outras palavras, o elemento religioso foi negligenciado por
razões políticas e interesses individuais. Esta tendência de menosprezar o
religioso nos conflitos apesar da sua relevância é contemporânea, e é Katherine
Marshall, uma dos raros autores a falar disso, que chamou nossa atenção sobre isso
dizendo: “Someone did a survey of over 1,000 academic articles on conflict, and
only three had given systematic attention to the role of religionˮ (MARSHALL, [1990?],
p. 1). Esta falta de atenção não significa, no entanto, que a religião está
totalmente ausente. Só que seu papel não chama atenção das pessoas como no caso
dos conflitos armados em Cité Soleil. Ela está presente, só que alguns
analistas acham sua presença irrelevante, então não a problematizam muito.
Contudo, esta ideia recebida está errada, pois alguns crentes que entrevistamos
reconhecem na religião um papel de terapia social, de recurso coletivo quando a
população se sente totalmente abandonada pelo governo e pela polícia nos momentos
violentos. Não é porque alguns líderes religiosos se envolvem nas violências ou
as violências religiosas são frequentes que faz com que a presença da religião
no processo de resolução dos conflitos é irrelevante. Na prática este argumento
não cabe, porque não são todas as religiões nem todos os líderes religiosos que
são promotores da violência e da intolerância. A citação seguinte nos dará razão:
Religious leaders have a special role to play in both perpetrating and
preventing violent conflict. This is because the religious beliefs, values, and
practices held by the mainstream in a society are an expression of their basic
worldview, a manifestation of assumptions about what exists outside the narrow
confines of everyday experience (CHRISTIAN COUNCIL OF SWEDEN et al., op. cit., p. 7).
Claro
que as religiões não são as únicas instituições capazes de desempenhar um papel
de mediação e de conciliação, as organizações de defesa dos direitos humanos,
os movimentos transnacionais e secularistas, algumas associações sociais e
culturais podem fazer a mesma coisa, senão estaríamos caindo num certo
moralismo religioso dos conflitos sociais, e, embora seja uma instituição
interessante e tão poderosa, a religião se encontraria contestada no papel da
resolução dos conflitos por fazer parte da causalidade do fenômeno. A mediação
dos conflitos – sobretudo no ambiente social do trabalho – é uma questão
institucional que necessita da presença de instituições laicas e jurídicas sem
pertencimento religioso ou ideológico capazes de administrar e assumir
corretamente este papel. Estamos falando do aparato da justiça (no altamente
institucional), das famílias, dos clubes, dos comitês comunais (nível sociocomunitário)
que seriam encarregados de não somente resolver os conflitos, mas também
preveni-los, a fim de criar na sociedade uma cultura de resolução jurídica e amigável
dos conflitos acabando com a prática de esconder os problemas. Prevenir os
conflitos é criar previamente um órgão competente encarregado de atuar neste
sentido. Prevenir faz parte de uma escolha individual e dos esforços coletivos.
Therefore, to prevent is to participate in an interactive system of
human relations in which decisions will – more frequently than not, more
commonly than not, more effectively than not – reduce the level of violence,
the risk of its use and/or minimize its consequences. Prevention necessitates
communication, connection, and a willingness to correct the negative and to
celebrate the positive, respectfully, persistently and openly (Ibidem, p. 17).
A
mediação do conflito não se improvisa, uma coisa que se prepara, se organiza,
então não adianta conceder este papel a uma instituição que, dificilmente, será
capaz de manter a neutralidade e a imparcialidade e de se livrar dos
preconceitos. Na verdade, embora a religião possa, reservadamente, desempenhar
este papel isso não implica que é muito qualificada para cumpri-lo. Os
conflitos ou as violências em que ela intervém efetivamente como mediadora ou
conciliadora são muito raros como já sublinhamos em cima. O que significa que,
hoje, o papel da religião nas violências sociais e conflitos coletivos – seja
como mediadora ou pacificadora – está se desprezado, em outras palavras, ela é
percebida como uma parte do problema do que um instrumento de solução.
Os
argumentos aqui não se referem a uma iniciativa da religião de impedir os
conflitos e as violências que, lembrando Marx, são inerentes ao ser humano e fazem
parte da natureza humana, e, como disse Simmel, são úteis e até necessários
pela dinâmica da sociedade e pelas mudanças sociais. Pois, sabemos que não
existe nenhuma instituição capaz de fazer isso. Mas, trata-se de sublinhar que o
caso de Cité Soleil acaba de ensinar-nos
que a melhor maneira pela religião de ser uma conciliadora nos conflitos e
violências é continuar a predicar a paz social, a vulgarizar seus discursos
sobre valores culturais, normas sociais, ética, humanidade e identidade entre
as massas populares desfavorecidas, a permanecer a instituição ideal que
consegue abordar com parcimônia as questões complexas deste mundo, como, por
exemplo, fé e medo, morte e vida, bem e mal, liberdade e fatalidade, sagrado e
profano etc., que transtornam a mente humana, e, por fim, a disponibilizar seu
espaço aos indivíduos em busca de refugio e consolação por causa do
acontecimento dos conflitos.
É
exatamente neste ângulo que o papel da religião nos conflitos armados em Cité Soleil se faz famoso e vulgarizador
das mensagens de pacificação. É que neste último aspecto, a religião ajuda
mais, indiretamente, por atividades religiosas, campanhas evangélicas e
programas sociais a pacificar ou a neutralizar as violências ficando no lado
das vítimas. As campanhas de evangelização e de pentecotização da
comunidade de Cité Soleil durante
este período foram dirigidas a este respeito e seus impactos foram observados
em dois ângulos: afluência maciça dos indivíduos para as igrejas protestantes e
resistência das igrejas ao fenômeno dos conflitos armados. É verdade que os
conflitos armados afetam o funcionamento das igrejas, e, se algumas fossem
obrigadas a fechar momentaneamente suas portas, era por medida de precaução e
de prudência, não por causa de medo e de ameaça. Assim, por paradoxal que isso
pareça, os conflitos constituem um elemento de fortalecimento da religião.
Todavia,
esta situação descritiva não é geral, ela varia de uma igreja a outra segundo
sua capacidade de resistir[12],
de encorajar seus membros e de reforçar suas atividades. Nos inquéritos
parciais em Cité Soleil observamos
que as igrejas constituíram, durante os períodos de grandes turbulências
sociais, de violências coletivas generalizadas e de transtornos políticos entre
2004-2006, o espaço social de veiculação de mensagens de esperança, paz e
reconciliação. Embora reduzido em termos de quantidade, ele permaneceu do ponto
de vista qualitativo a força das vítimas no qual elas reorganizam sua vida
social. Assim, gostaríamos de enfatizar o desenrolamento dessas observações
cujos alguns elementos precisam chamar atenção no que diz respeito ao papel
pacificador da religião.
A
primeira observação concerne o comportamento de resistência e de permanência de
algumas confissões religiosas – adventistas, pentecostais, católicas e vodu –
que, apesar dos conflitos, não abandonaram a cidade aos criminosos. Elas
conseguem se adaptar às novas realidades sociopolíticas que se apresentam e
transformar o espaço religioso em um lugar de reconforto social para acompanhar
as pessoas. Ao resistir ao que podemos chamar, entre 2003-2007, uma tragédia
social, algumas igrejas demonstraram que elas são realmente um centro de
reconforto social para a população em aflição e em busca de refugio, um lugar
onde as pessoas podem reconstituir suas relações sociais e respirar um ar de
paz e de tranquilidade. Numa entrevista que realizamos com um líder importante
de Église Chrétienne des Cités, sobre
o que a igreja fez como ação para ajudar a solucionar os conflitos, ele apontou
o seguinte:
O papel da igreja é pregar as
palavras de Deus, realizar cruzadas e evangelizar as pessoas nas ruas para que
Deus possa transformar as pessoas. Entrei nos bairros mais difíceis, abordei os
bandidos armados, alguns ouviram, mas outros declaram que não têm tempo por
este negócio. O papel da igreja é pregar a paz, tanto quanto há guerra não pode
ter paz e a igreja não pode transformar. (Entrevista com diácono Dovaine
Chery, 21/05/2017).
Um
pastor desta mesma igreja – que requereu
o anonimato – declarou que ela nunca parou de funcionar embora de um lado os
números de cultos semanais fossem reduzidos por razão estratégica e auto-conservação
a fim de não esgotar os recursos humanos e bens materiais, as frequentações
diminuem consideravelmente do outro lado[13]. Um
mesmo líder de Église Chrétienne de la
Sainteté disse a mesma coisa. Verificamos que, efetivamente, nos períodos
de grandes conflitos de 2004 a 2011, as igrejas se tornaram o espaço de
predileção das pessoas para se manterem na harmonia e na coesão, o no qual,
além de todas as aflições, seus elos sociais se retecem. Essas relações sociais
dos fiéis entre si e destes com o resto da comunidade são revitalizadas neste
espaço social de ambiente conciliador e acolhedor que representam as igrejas
tanto católicas como protestantes. As igrejas como as perístoles foram
transformados em um lugar de efervescência coletiva e de terapia social, o que
quer dizer que as pessoas acreditam no que está passando neste espaço para
superar os momentos difíceis que representam os conflitos armados. Nas igrejas elas
esperam uma vitória para seus problemas. Assim, em período de conflitos
armados, podemos dizer que a arena religiosa – muito solicitada, isto não em
referência às quantidades de pessoas que a frequentam, mas em referência à sua
capacidade de se adaptar às novas realidades sociais neste bairro – constitui o
símbolo da resistência. A permanência das atividades religiosas e a resistência
das igrejas ajudam muito as pessoas a viver as realidades, a acreditar num
futuro melhor e a ter coragem e força para enfrentar as situações difíceis.
Uma
segunda observação leva em consideração os elos que os bandidos desenvolveriam com
a instituição religiosa, sua participação direta ou indireta nas atividades
religiosas. Com efeito, apesar de não poder verificar este elemento, alguns
líderes influentes das bandas armadas passadas já eram membros de uma igreja ou
nasceram de uma família religiosa ou eram alunos de uma escola religiosa ou
frequentavam uma igreja mais precisamente. Era, por exemplo, o caso daquele
chefe chamado Ti Yonèl, que, nos anos noventa e dois mil, comandava a
localidade de Bois Neuf. Segundo
algumas pessoas, ele era um membro influente de uma igreja chamada Église de Dieu le monde pour Christ,
situada na localidade de Bois Neuf.
Acredita-se também que, nos anos noventa, Covington, o criminoso que reinava em
Boston, zona sul de Cité Soleil, era membro de Église
Matthieu 16, Dread Wilmer em Projet Drouillard, nos anos 2003, frequentava Église Chrétienne des Cités. Mas, os casos de Labanière e Evens ti
kouto são particulares na medida em que um pastor de Église
Matthieu 16 em Boston
nos contou numa entrevista concedida em 16 de maio de 2017 que esses bandidos
se acostumavam a frequentar sua igreja cada domingo. Além disso, em algumas ocasiões
eles apoiavam alguns programas desta igreja. Segundo um inquérito da
organização humanitária italiana, AVSI, realizado entre 2010 e 2013, vários
jovens que se tornaram bandidos e criminosos na comunidade de Cité Soleil pertenciam a uma família de
cultura religiosa e receberam na sua infância, adolescência ou juventude uma
educação religiosa. Alguns, embora envolvidos nas atividades criminosas e
participassem clandestinamente nos atos de banditismo, continuam a frequentar
as igrejas e beneficiaram da cumplicidade das suas famílias.
Em
terceiro lugar, não podemos esquecer o respeito reverencial dos bandidos para
os líderes religiosos e os lugares de culto, sua atitude sacramental em frente
dos símbolos religiosos e dos dias de atividades religiosas, em particular, o
domingo. O profundo respeito dos bandidos não apenas para os lugares de culto:
Igrejas, templos, mosquetas e outros, mas também, para os atores religiosos
(pastores, padres, houngans etc.) e para os dias das atividades religiosas
(sobretudo domingo ), constitui um elemento cultual e ritual que impedia
moralmente aos grupos armados irem atacar e violar o espaço religioso. Até para
os bandidos mais intolerantes e irreligiosos, este espaço permanece sagrado e
inviolável. Três coisas, talvez, possam explicar as razões desse sentimento de
respeito que facilita a religião divulgar suas mensagens de paz e de
desenvolver sua meta-mediação. Primeiro, a sacralidade da igreja e dos seus
símbolos, segundo, a neutralidade dos líderes religiosos e, terceiro, a
participação social das igrejas nas ações comunitárias na coletividade em que
os grupos armados evoluem.
Do
outro lado, a atitude dos bandidos em frente dos símbolos religiosos é também
interessante na medida em que observamos que alguns acostumavam a levar com
eles símbolos religiosos como cruz (muito usada na religião católica), lençol
vermelho (um símbolo autêntico do vodu), rosário etc. O mais frequente e
visível é o lençol vermelho. Na opinião popular, as pessoas acreditam já ter
visto bandidos fazer gestos mágicos com lençóis vermelhos, rosários e cruz ou
participar das cerimônias voduícas de interpelação dos espíritos de proteção
como Legba e Ogou Feray nos dias que precedem os conflitos. Se não foi possível
verificar que, realmente, todos os bandidos usavam um símbolo religioso nos
conflitos armados, eu, pessoalmente, vi várias vezes Dread Wilmer com um lençol
vermelho atrás do bolso da sua calça ou amarando sua cabeça, quando eu morei em
Projet Drouillard, que era seu feudo
onde ele estabeleceu sua dominação banditista. Uma vez, ele o tirou do seu
bolso e o passou no seu rosto que estava soando. Segundo algumas pessoas este
chefe de grupos armados servia Erzulie
Dantò, o que explica então sua crueldade.
Este
gesto pode parecer muito simplista para alguns, enquanto para um haitiano ele
tem muita significação, porque no vodu cada cor usada – amarelo, branco, roxo
ou vermelho[14]
– está acompanhada de uma significação mística e tem um valor mágico. Em geral,
o branco designa os deuses tranquilos e calmas do rito Rada, que salvam e curam
como Damballah Ouèdo, enquanto o
vermelho é para os deuses cruéis do rito Petro, capazes de matar como Erzulie Dantò. O lençol vermelho
simboliza assim a proteção, a possessão mística e o serviço desta última loa.
Na sociedade haitiana, a presença do vermelho – símbolo de sangue –
materializado pelo lençol ou representado por um laço ao redor da cintura ou do
pescoço inspira não só medo e crueldade, mas também a possessão ou o serviço de
uma loa. A porta dos símbolos religiosos não traduz uma guerra santa nem uma
dominância religiosa, mas a proteção dos espíritos em que acreditam aqueles
bandidos. Além disso, por causa das atividades religiosas, o domingo é um dia
sagrado para os grupos armados pararem suas confrontações, então, as
possibilidades de acontecer confrontações armadas entre eles naquele dia são
muito fracas. Domingo constituiu assim um dia de pacificação, de tranquilidade
e de reconforto que as pessoas que fugiram os conflitos aproveitavam para
visitar sua família, ver seus amigos e fazer outras coisas. Mas, se, ao longo
do tempo, o dia domingo perdeu totalmente seu caráter sagrado, principalmente
entre 2012 e 2016, o espaço religioso continua conservando sua sacralização
apesar da degenerescência do fenômeno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para
concluir, gostaríamos de ressaltar que, além do que foi dito sobre a presença do
vodu nas atitudes dos bandidos, há um elemento interessante a sublinhar porque tem
um papel marcante: os amuletos. O uso dos amuletos se faz, na opinião popular,
após os chefes de bandas armadas terem consultado um houngan e invocado o deus
vodu da guerra Ogou Feray. O objetivo
é experimentar o ritual místico de imunização contra as balas. Diz-se que o
indivíduo tem um zumbi ou um «point» que lhe impede ser atingido por balas. Os
conflitos são um momento ideal para testar o truque místico a fim de constatar
se ele funciona ou não. Dread Wilmer, Labanière, Ti Yonèl e vários outros eram
vistos desta maneira porque usava um lençol vermelho como amuleto. O processo que
levaria à imunização mística contra as balas pode ser muito longo e muito
complicado.
É
uma dimensão socioantropológica do fenômeno que abordamos com um houngan – que deve
permanecer anônimo – numa entrevista em 1º de abril de 2017. Segundo ele, esta
prática existe efetivamente no vodu e é uma obra executada mais pelos houngans makout, que são servidores de «loas chauds» ou «loas méchants» representados pelo vermelho do que pelos houngans asogwe que se conectam com os «loas doux» ou espíritos do bem
simbolizados pelo branco. Ademais, se os bandidos se acostumassem a solicitar
dos houngans este tipo de serviço, eles o fariam fora da sua própria comunidade
para guardar o segredo da proteção mística. Uma das condições para conseguir e
conservar esta força mística é não matar, e, o que leva os bandidos a procurar
este tipo de proteção é o medo de morrer e de ser baleado ou vencido pelo
inimigo nas confrontações, acrescentou ele. Assim, se alguns dentre eles se aproximassem
mais do vodu que as outras religiões é porque, espiritualmente, o vodu lhes faz
sentir que são detentores de forças sobrenaturais que os tornam invencíveis.
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[1] Sobre os conflitos religiosos entre, de um
lado, o catolicismo e a franco-maçonaria ver Hurbon (2004, p. 186-191) e, do
outro, entre a religião católica e o estado haitiano pela hegemonia cultural e
religiosa no Haiti (Idem., p. 159-192).
[2] As guerras de religião declaradas
unilateralmente contra o vodu pelo catolicismo, «as famosas
campanhas anti-supersticiosas», desde a Concordata de 1860 até
a ocupação norte-americana são tratadas também por Nérestant (1994, p. 193-218;
123-136).
[3] Com o crescimento do protestantismo no Haiti
e o aumento dos novos movimentos religiosos, saber, os pentecostais e os
evangélicos, o catolicismo passou, respetivamente, de 84 % a 80,3 % de 1950 a
1982 para atingir hoje 55 % da população. Desde os anos 1990, e mesmo antes,
assistimos um crescimento exponencial e desorganizado das igrejas protestantes
nos bairros populosos e a conjugação deste movimento com os programas sociais e
humanitários. O que lhes permite atingir uma quantidade maior de pessoas nas zonas desfavorecidas e
marginalizadas.
[4] O exercito celeste é um movimento religioso
rebelde oriundo do protestantismo presente tanto no Haiti como na diáspora.
Apesar de sofrer diminuição e transformação, ele está ainda muito presente nas
localidades com condições sociais e econômicas muito precárias. Para ter mais
conhecimento sobre assunto ver André Corten (2001, p. 102-105).
[5] Para um conhecimento mais detalhado e um
estudo mais aprofundado sobre o protestantismo haitiano ver Pressoir, Catts. Le protestantisme haïtien. Tome 1, 2
e 3. Port-au-Prince: Fardin, 2016.
[6] Porque o objetivo aqui não é fazer uma
história sociológica do protestantismo e das outras religiões, mas chegar a compreender
seu contexto social de implantação e seu papel que elas desempenhariam no
fenômeno de conflitos armados e violências coletivas em Cité Soleil.
[7] Segundo alguns autores como, por exemplo,
Micial Nérestant, Rénald Clérismé, perante seu fracasso de impedir a
proliferação do culto vodu na sociedade haitiana, a igreja católica tem
abandonado de caçar o vodu. Ela entrou, então, num processo de compreensão e de
pesquisa do vodu.
[8] Ver o capítulo La réglementation
anti-superstitieuse aux Antilles In Pluchon, Pierre. Vaudou, sorciers, empoisonneurs: De Saint-Domingue à Haïti. Paris: Karthala, 1987, p.
57-69.
[9] O terceiro que, em algumas circunstancias é
o personagem chave da resolução dos conflitos, não supõe só a mediação. Ele
desempenha também o papel de arbitragem e de conciliação (CARRÉ, 2013, p.
171-172). A intervenção do terceiro é a prova que demonstra que o conflito
atinge sua dimensão social.
[10] Alguns líderes religiosos com quem
conversamos neste município se orgulharam de que, após algumas semanas de
jejuns, de orações, de evangelizações e de predicações, os conflitos armados
cessaram. Para eles, os bandidos ouviram a voz de Deus através das mensagens
bíblicas da igreja. Mas, é bom também ouvir alguns dentre eles falando das suas
dúvidas nesta paz encontrada entre os grupos armados. Muitos ignoram sua origem
e duvidam do seu futuro. Uma secção da terceira parte da tese será consagrada
à problematização mais aprofundada do
processo da paz de 2015 em Cité Soleil.
[11] No contexto atual da pacificação da cidade,
os grupos armados permanecem não totalmente inimigos, nem necessariamente
amigos, mas estritamente separados, controlados e contidos. Este aspecto será
problematizado mais quando analisaremos a parte relativa ao processo da paz que
se iniciou em Cité Soleil no fim de
2015.
[12] Quando estivermos falando da capacidade de
resistir da igreja, estamos nos referindo a três elementos: recursos humanos,
recursos materiais e variação nos programas sociais e religiosos.
[13] Sim, durante
todos os conflitos (estou falando dos últimos três anos, por exemplo, em 2004
as frequentações diminuíram consideravelmente e chegamos a 500 pessoas), a
situação da frequentação da igreja é muito variável. Quando não têm mais
conflitos, a quantidade aumenta e vice versa. Entre 2009 e 2010 a frequentação
aumentou se tornando normal e atingindo pelo menos 1 000 pessoas. Em dezembro
de 2010, a igreja se reuniu com mais que 2 500 pessoas, pois, como você sabe,
após o terremoto algumas pessoas perderam suas igrejas, vieram se refugiar em
Cité Soleil e começaram a frequentar nossa igreja. Mas, quando a situação
começou a se tornar normal, algumas pessoas começaram a voltar pra sua casa,
sua igreja, seu bairro, a quantidade começou a diminuir. Os conflitos de 2013
afetaram muito a igreja. por que nos momentos de turbulências Cité Soleil é
como uma zona de transição: O indivíduo está passando, mas não fica
definitivamente, ele está lá provisoriamente, mas quando encontrar outra
oportunidade ele vai embora. O que faz com que a quantidade da igreja seja muito
instável. Por exemplo, em dezembro do ano passado (em janeiro 2016), a igreja
chegou a 700 e 750 pessoas como frequentação porque os conflitos estavam
piorando. Era um dos níveis mais alarmantes que a igreja nunca atingiu. Porém,
uma vez que a situação volta pela normalidade, as frequentações começaram a
aumentar e, em dezembro do mesmo ano, chegamos a 1 200 pessoas pelo menos
(Entrevista com pastor Profaite Médeus, 08/04/2017).
[14] O roxo é geralmente usado nas cerimônias dos
mortos na honra do loa da morte, Guédé, nos dias 1 e 2 de novembro. O amarelo
designa uma variedade de deuses como, por exemplo, Loko Atissou, Lebga, Jean
Dantor etc.
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