HAITI E ESTADOS UNIDOS, NOS CAMINHOS DA OCUPAÇÃO: REFLEXÕES PARA LUTAR CONTRA A OCUPAÇÃO E A DOMINAÇÃO MENTAL
Jean FABIEN[*]
RESUMO
Escrito no âmbito da Conferência Internacional do Centenário da Ocupação Americana do Haiti, ocorrida na Unicamp no dia 30 de setembro de 2015, em torno do tema: 28 de julho de 1915 – 28 de julho de 2015: 100 anos de Ocupação Americana do Haiti. Da Ocupação militar à dominação política e econômica: O que tem que ser compreendido e memorizado?, este artigo pretende discutir aqui duas ideias principais. Após mostrar e analisar por qual processo Haiti se liberou da trilogia colonial europeia (França, Inglaterra e Espanha), ele problematiza as relações entre Estados Unidos e Haiti, repartidas no que chamamos os três grandes momentos históricos (1789-1804; 1804-1864; 1864-1915) mostrando que o projeto de ocupação, a dominação, a desigualdade e o racismo sempre estiveram no centro destas, e que, por outro lado, o ato de não reconhecimento pelos Estados Unidos da independência haitiana foi uma estratégia americana perfeitamente refletida para manter o Haiti numa situação de fragilidade e de enfraquecimento. O artigo se ambiciona então a lembrar do caminho que levou à ocupação de 1915; estabelecer que este reconhecimento oficial da independência, pelo qual o governo haitiano estava infatigavelmente lutando e reclamando de todo Estado, dos Estados Unidos, em particular, não resolveu absolutamente nada no seu tratamento como Estado fracassado, apesar de ter sido um passo muito significativo e importante no âmbito da diplomacia internacional; por fim, propor algumas ideias que poderiam ajudar nas lutas atuais pela liberação da nação haitiana da ocupação física e da dominação mental.
Palavras chave: Haiti. Estados Unidos. Ocupação. Dominação
ABSTRACT
Writing in the context of the International Conference of the American Occupation of Haiti Centenary, which took place at Unicamp on September 30, 2015, on the theme: July 28, 1915 - July 28 2015: 100 years of American Occupation of Haiti. From the Occupation military to the political and economic domination: What has to be understood and memorized?, this article discusses two main ideas here. After showing and analyzing process by which Haiti released of European colonial trilogy (France, England and Spain), he discusses the relationship between the United States and Haiti, divided into what we call the three major historical periods (1789-1804, 1804-1864; 1864-1915) showing that the occupation project, domination, inequality and racism have been at the center of these, and on the other hand, the act of non-recognition by the US of Haitian independence was a perfectly reflected American strategy to keep Haiti in a fragile and weakened situation. The article then aims to remember the path that led to the occupation of 1915; establish that this official recognition of independence for which the Haitian government was tirelessly struggling and complaining of any State, the United States, in particular, did not solve anything at all in their treatment as a failed state, although it was a very significant and important step in international diplomacy; finally, propose some ideas that could help in the current struggles for the liberation of the Haitian nation of the physical occupation and mental domination.
Keywords: Haiti. U.S. Occupation. Domination
INTRODUÇÃO
Os objetivos desta conferência eram analisar essa ocupação na dimensão do imperialismo cultural e político americano após um século e problematizar as relações entre Estados Unidos e Haiti desde o nascimento das duas nações. Esta intervenção consistia em traçar um pouco a trajetória histórica do Haiti nas suas relações com Washington e em dar, de um ponto de vista metodológico, uma entrada introdutiva e analítica aos diferentes temas debatidos nessa conferência. Esta introdução serviu a problematizar então as circunstancias históricas, geopolíticas, sociais e políticas que provocaram a ocupação americana do Haiti em 1915.
Além disso, esta conferência era sobretudo uma excelente ocasião de continuar a fazer perguntas pertinentes e aprofundar este exercício de reflexão ao qual me fui consagrado desde comecei a estudar a natureza e o conteúdo das relações entre Haiti e as nações mais desenvolvidas, em particular, os Estados Unidos. Historicamente, são relações sempre caracterizadas por uma diplomacia de desigualdade e de preconceito, ou seja, relações entre dominantes e dominados; fortes e fracos; civilizados e primitivos; racionais e alienados; superiores e subalternos, países industrializados ricos e países pobres. O comportamento pacífico dos Alemães que, ao invés de defender os Haitianos protegendo seus próprios interesses econômicos contra os marines americanos, prefiram sair do território, tende a mostrar que as relações haitiano-alemães, que, desde 1805, tinham acumulado uma taxa de 80% de benefícios para os Alemães, foram também marcadas pela desigualdade, pelo racismo e pela hipocrisia, pois o reconhecimento da soberania e da independência do Haiti nunca beneficiou de um tratamento oficial pela chancelaria alemã. Ao contrário, parece que toda Europa se uniu, pela contaminação do racismo dos negros, para combater o Haiti independente.
Se ficarmos só olhando na ocupação sem levar em conta o percurso histórico que nos levou a esta tragédia, será difícil compreendê-la na sua essência. Por isso, é importante, primeiro, ver o processo de transformação de Santo Domingo em Haiti para entender que a ocupação americana não podia ser efetiva sem a violação flagrante da soberania territorial e política do Haiti, da sua independência, da liberdade do povo haitiano, dos direitos humanos e dos princípios democráticos, como, por exemplo, o direito de cada povo de autogovernar-se, qualquer seja sua situação interna. Em segundo lugar – como este artigo pretende ser uma tentativa de mostrar que não pela magia nem pelo misticismo que esta ocupação aconteceu, mas, ela é o fruto de uma prática política, social e cultural contínua, que, ao longo da nossa historia social, só produz efeitos negativos – será fundamental abordar as relações entre Estados Unidos e Haiti desde o comércio clandestino e ilegal até acontecer a ocupação de 1915 passando pelo reconhecimento legal e oficial da independência do Haiti pelos Estados Unidos a partir do Tratado de 1864, a fim de mostrar que, desde seu nascimento, o novo Estado independente enfrentava problemas estruturais cruciais relativos à sua gestão autônoma, por outro lado, ele sofreu de um isolamento e de um esquecimento inacreditáveis no seio da sociedade das nações. O que nos traduzimos, desde então, como uma marcha quase inevitável para a ocupação militar e para a dominação mental.
1. DE SANTO DOMINGO A HAITI
Santo Domingo, magnífica e ótima colônia da França, belíssima filha da Metrópole francesa, sua historia, infelizmente, não faz parte dos manuais escolares dos garotos franceses nem dos currículos universitários. Que pena! Uma colônia de uma historia tão brilhante e impactante no mundo, que, pela causa da sua exploração excessiva, serviu a enriquecer e fortunar a França; foi não somente a colônia mais prospera e rica da França em termos econômicos, mas a mais produtiva de todas as outras colônias francesas reunidas junto no mundo em termos de espaço geográfico, de riqueza da natureza e de fertilidade do sol. No entanto, o garoto francês é um verdadeiro analfabeto da revolução haitiana (CAUNA, 2009). Parece brincadeira, mas é verdade: a historia da revolução das massas populares de escravos negros em Santo Domingo, completamente privadas de equipamentos sofisticados de guerras e absolutamente ignorantes das grandes técnicas de combate tais como são ensinadas nas escolas de guerra ocidentais em geral, na França em particular, não se insere no programa nacional de educação da França, não é, portanto, ensinada aos Franceses, e também, – o que nos surpreende –, ela é muito pouco ensinada na América Latina. Por quê? O que isso significa?
Uma das causas explicativas a isso é a derrota histórica do exercito francês dirigido nessa época por Napoleão Bonaparte durante as guerras revolucionárias dos escravos que se iniciaram, timidamente, desde 1791, mas, explodiram efetivamente a partir de 1802, após a França ter manifestado a vontade de restabelecer a escravidão uma vez abolida em 1794 sob a base de um decreto tomado por ela mesma. É que, em segundo lugar, até hoje no século XXI, pelo seu ódio e racismo dos negros, os Franceses nunca querem aceitar essa derrota. Trata-se de um racismo doente da França que lhe faz esquecer todas as bondades e todos os benfeitos da sua antiga colônia, tornada independente, na sua prosperidade econômica. Um racismo e uma enfermidade espiritual, como disse Fanon (2001), que fazem com que a França, ao não querer aceitar esta independência, deifica Toussaint Louverture enquanto nunca cessa de demonizar Jean-Jacques Dessalines. « Le peuple colonialiste ne sera guéri de son racisme et de son infirmité spirituelle que si, réellement, il accepte de considérer l’ancienne possession comme une nation absolument indépendante, aponta Frantz Fanon »[1] (FANON, 2001, p. 127). Mas, a França esqueceu também que seus comportamentos e suas ações injustas, no fim do século XVIII e no início do século XIX, foram um dos catalizadores das revoltas que aconteceram nas todas as colônias. Ela esqueceu, ademais, que, ao ficar ignorando e menosprezando a revolução haitiana, ela contribuiu a reforçar seu significado, a aumentar seu valor para o mundo e tornar os Haitianos cada vez mais orgulhosos da sua independência e liberdade conquistadas ao preço do sangue. Portanto, o racismo feroz francês participou, de certa maneira, da grandeza e da importância que a revolução haitiana adquire hoje.
Com efeito, fundado pelos colonizadores franceses nos anos 1625, Santo Domingo, a parte oeste da ilha Hispanhola, é fruto de um acordo pela partilha desta encontrado entre colonizadores espanhóis, que se terem instalado na ilha desde 1492, e colonizadores franceses. Este Santo Domingo, desde Toussaint Louverture, que representa sua figura emblemática das revoltas no século XVIII até o início do século XIX, caminhou nas estradas de desaparecimento não apenas em termos de nome, mas também em termos de sistema. De fato, os últimos confrontos mortais de 1803 o transformaram em terra de liberdade e de independência. Com efeito, a França começou a perder, a partir do fim do século XVIII, o controle da quase totalidade das suas colônias, principalmente, Santo Domingo, não somente pela causa das situações de turbulências e revoltas que cresceram dentro destas, mas também pela causa dos problemas internos aos quais confrontava a França, como, por exemplo, o questionamento da monarquia e a reivindicação de uma nova república pelos Franceses que não demoravam a iniciar suas próprias lutas revolucionárias. Além de várias outras situações relevantes, a decisão, em 1802, da França pelo intermediário de Bonaparte de restaurar a escravidão abolida em 1794, foi o último caso que inflamava a raiva dos escravos, pois, o cumprimento de tal decisão, faria desaparecer a jamais a esperança da independência e da liberdade pelas quais os escravos estavam lutando, morrendo, fugindo, se suicidando.
Ora, sem precisar retomar as diversas maneiras de resistir dos Índios para manifestar sua rejeição do sistema colonial, é preciso lembrar que os negros africanos escravizados nunca aceitaram também essa condição escravizante e desumanizante, e, como os Índios, eles levaram diversas formas de lutas para sair dessa situação: fugas, quilombolas, suicídios, incêndios. Se as revoltas em Guadalupe e Martinica se pacificaram antes de se pararem definitivamente, com Toussaint Louverture, a colônia de Santo Domingo continuou suas lutas pela independência apesar de, em junho de 1802, ser capturado pela França onde morreu em abril de 1803. A captura de Toussaint, ao invés de ser uma solução colonial para retardar ou aniquilar os movimentos revolucionários dos escravos e destruir seu sonho de liberdade, foi, de preferência, uma ótima ocasião para que estes movimentos possam alcançar uma dimensão mais energética com a intrepidez dos homens como Dessalines, Pétion, Christophe, Capois dentre outros. Então esta captura fortaleceu o caminhou da liberdade e da independência do Haiti. Toussaint Louverture faleceu em abril de 1803, infelizmente, não viu essa independência pela qual combateu vida inteira, pois, foi no dia 18 de novembro de 1803 que o exercito francês – mais organizado e equipado do que os grupos armados dirigidos pelos generais indígenas que tinham servido no exercito francês – foi definitivamente derrotado.
Do ponto de vista lógico e em termos de tratamento proporcional, não tem como falar, no sentido técnico do termo, de exercito haitiano (como os historiadores o chamaram) por, pelo menos, duas razões fundamentais. A primeira é que a revolução de Santo Domingo foi uma revolução essencialmente dos escravos contra o sistema colonial em toda sua integralidade e crueldade para eliminar, de maneira definitiva, todo este arsenal racista, segregacionista e colonialista europeu. Ou seja, ela foi a obra magnânima de uma banda de oprimidos contra todos seus opressores. A segunda razão diz respeito ao fato de que não é por que uma minoria de generais, começando por Toussaint até Dessalines, Pétion, Leclerc, Rigaud, Capois, Christophe, tinham servido nos exércitos colonialistas francês, espanhol e inglês, antes de se rebelar contra eles, que poderíamos peremptoriamente sustentar que a batalha de Vertières foi um confronto mortal entre dois exércitos a propriamente falar, como se estivéssemos falando de dois exércitos profissionais bem treinados, que, cada um em que diz respeito, está ciente das técnicas e regras da guerra. Na verdade não! Não se trata de nada disso.
As únicas técnicas e regras de guerra que os escravos conheceram eram sua consciência humana de que as condições nas quais estão colocados são indignas do ser humano. Não tinha teoria social e científica nenhuma para lhes apreender isso. Eis o que concede à revolução haitiana toda sua originalidade e particularidade na historia mundial. Ela é o produto da rebelião dos escravos que, na realidade, nunca perderam a consciência de saber que eles não são escravos mas seres humanos escravizados; eles não são animais mas domesticados; eles não são coisas mas coisificados; e que um dia esta consciência de liberdade e de dignidade como ser humano ia se manifestar plenamente (FANON, 1961). Todavia, – para refutar a tese que faz passar os lideres da revolução por vulgares analfabetos e iletrados –, precisamos entender três coisas. Primeiro, Toussaint era um gênio em matéria de organização dos combates e de posicionamento das tropas. Podemos acreditar, com certeza, que Dessalines, Pétion, Christophe, Capois e outros, que lutaram sob sua comanda, herdaram desta potencialidade e competência e se inspiraram do seu gênio estratégico para levar os escravos à independência e à liberdade. Em segundo lugar, estes e outros, por terem servido nos exércitos colonialistas francês, inglês e espanhol, sob a ordem de Toussaint, adquiriam experiência de guerra, sabiam manobrar armas, sabiam como organizar os grupos de escravos e aprendê-los a lutar e a se defender contra o inimigo, e, por fim, no que dizem respeito às massas populares de escravos, elas estavam prontas e preparadas psicologicamente a morrer e a enfrentar os mesmos efeitos perversos do genocídio índio ao invés de continuar sendo escravos.
Derrotada, a França perdeu a jamais sua melhor colônia! Santo Domingo, colônia francesa, desaparece a jamais, surgiu, então, uma nova ordem social, a dos Haitianos num Haiti soberano, livre e independente. Porém, ela nunca vai deixar a nova nação tranquila!
Essa ruptura brutal com a ordem colonial europeia significaria duas coisas: primeiro, um rompimento radical e total com as velhas práticas coloniais, segundo, a criação de uma nova sociedade soberana e livre dos negros que se autogovernarão, organizarão sua própria vida social e definirão seu próprio destino. Porém, é importante sublinhar que, do ponto de vista de experiência política, a gestão dessa independência era um grande desafio. Muito frágil e mesmo problemático, o novo Estado devia enfrentar uma dificuldade enorme: a fraqueza de um real plano de governança dos primeiros dirigentes para definir o destino deste povo frescamente saído da escravidão. Enguiçado de modelo, o novo Estado, oscilando entre imitação e plágio, acabou, finalmente, malgrado ele e nas suas atuações, de reproduzir o mesmo sistema colonial antigo. Do outro lado, as últimas guerras de independência deixaram um país abalado, destruído, sem quase nada em termos de recursos naturais, financeiros e econômicos, em termos de produção agrícola e de recursos humanos capazes de encontrar soluções racionais aos problemas complexos. Assim, de 1803 a 1806, Haiti está à sua primeira grande fase de experiência democrática com Dessalines que, apesar de tudo, se esforçou em mostrar sua capacidade em identificar alguns problemas estratégicos e urgentes sobre os quais o Estado haitiano teria que agir rapidamente.
O colonizador francês desapareceu fisicamente, mas deixou um mito esquizofrênico de retorno no imaginário da sociedade haitiana, em particular, na mente dos novos dirigentes, tal foi, por conseguinte, o elemento central da política de segurança nacional do novo estado que não dispus de recursos econômicos e financeiros próprios para sustentar e conduzir essa política. Por outro lado, existiu uma outra ameaça iminente, a dos Espanhóis espalhados na parte este, hoje a República Dominicana. Os dirigentes haitianos precisavam de um plano estratégico para expulsar esses Espanhóis, por que sua presença na região representava uma grande ameaça política e geopolítica para a independência do Haiti. Isso permite entender também, como já sublinhamos, que a revolução haitiana, apesar de ter sido radical, não era total. No primeiro caso, as estratégias do governo haitiano foram trabalhar a reconstituir rapidamente a produção agrícola para poder alimentar sua população, comercializar com os outros países, comprar armas e equipamentos de guerra para fortalecer seu exercito, comprar materiais de construção para construir fortalezas que permitem de se proteger contra quaisquer eventuais ataques da França. Nos Estados Unidos ele conseguiu as armas e munições enquanto na Inglaterra os produtos alimentares, pois, desde Toussaint, no contexto das lutas revolucionárias, ambos já tinham vendido armas e equipamentos de guerra ao Santo Domingo para combater a França. O segundo caso foi um fracasso por Dessalines, não por que era incapaz de realizá-lo, mas por que faleceu antes de levar a sucesso sua política de liberar inteiramente a ilha expulsando os Espanhóis. A reunificação da ilha será um sucesso com Boyer a partir de 1821.
Haiti nasceu com muitas dificuldades de caráter social, político, econômico, financeiro, técnico e científico. Uma organização interna e uma política de centralização para criar um Estado forte – como fez a China depois – foi uma das propostas de Dessalines para governar o país. E como esta visão não poderia ser possível e efetiva sem mexer nas grandes propriedades deixadas pela França e monopolizadas pelos generais, então isso provocou conflitos virulentos internos até a morte daquele que tinha esta visão, neste caso, Jean-Jacques Dessalines. No dia seguinte do seu assassino em 17 de outubro de 1806, Haiti já se abriu ao comércio internacional, exceto à França, numa desordem total, seu mercado nacional já era acessível aos países como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e Dinamarca com os quais ele se comercializou numa perfeita clandestinidade, ilegalidade e irregularidade, por que, por um lado, a França estava pressionando todos os países para não entrar em contato com essas bandas de rebeldes e criminosos que massacraram os brancos, pelo outro, Haiti estava sofrendo da sanção de isolamento imposta pela comunidade internacional dominada nessa época pela França. Ou seja, no desrespeito e na ausência total das regras de comércio e apesar da proibição da França feita aos outros países europeus de estabelecer relações comerciais com suas antigas colônias, em particular, as que se rebelaram contra ela, portanto, Santo Domingo. Antes de se ter convencido de uma perda definitiva de uma esperança de reconquistar essa colônia, a França nunca abandonou sua ilusão de continuar a considerar Haiti como sua colônia, por isso, nunca quis, até 1825, reconhecer sua independência.
Com Dessalines, apesar desses caracteres clandestino e isolado que dominavam as políticas econômicas internacionais do Haiti com os outros países, tais caracteres foram muito desvantajosos e deficitários para a economia haitiana, Haiti conseguiu se impor e definir suas próprias regras e políticas de comércio no interesse fiscal do país, então, não foi tratado, como vamos ver depois, enquanto um pequeno estado que está buscando privilégios das grandes nações.
Para gerir a independência, algumas decisões de caráter socioeconômico e político, sobretudo no plano nacional, se impõem entre as quais a questão da terra e da política agrária; a repartição das riquezas e das competências disponíveis em diferentes postos estratégicos da nova administração; a gestão dos pequenos recursos disponíveis do Estado e o desenvolvimento da produção agrícola. Do outro lado, sobre o plano internacional, o país precisava se abrir ao mercado internacional desde que fortaleça seu Estado antes de incentivar os investimentos estrangeiros. Mas, a grande questão é como?
Em primeiro lugar, sobre o plano da política interna, o Estado haitiano organiza seu espaço geográfico definindo os departamentos mais importantes como Artibonite, Sul, Sudeste e Oeste, cada um dirigido por um general; deslocando o capital Porto Príncipe por razão de estar muito perto das zonas litorais para Marchand – cidade originária de Dessalines; organizando o setor agrícola encorajando as produções de café, cacau, algodão, índigo, Campeche. Em segundo lugar, o novo governo empreende de estabelecer uma gestão justa dos bens do Estado no interesse geral da sociedade para ter recursos financeiros suficientes para poder comprar produtos comestíveis nos Estados Unidos, armas e munições pela defesa da integridade do território contra as ameaças da França na Inglaterra. As ameaças francesas eram reais e fortes. Por isso, segundo Madiou (1847-1848) e Ardouin ([199-]), a maior parte dos recursos econômicos do país – antes da divida da independência imposta pela França – foi destinada às compras de equipamentos militares, ou seja, 2/3 do PIB do país eram absorvidos pelas despesas de tal natureza.
Perseguido infatigavelmente pela França, esquecido na historia mundial, abandonado pela sociedade das nações, compelido a ficar num comércio clandestino sempre deficitário para sua economia e muito mais beneficiário para as grandes nações, Haiti está pagando o preço da conquista da sua independência e liberdade que, nas visões discriminadoras e preconceituosas dos países desenvolvidos, foram julgadas prematuras no plano político e socialmente mal conquistadas. O país foi colocado numa situação de quase não escolha: ou aceitar a recolonização pela França ou por qualquer outro país da Europa ou do mundo, como fez a República Dominicana aceitando a recolonização da Espanha no século XIX; ou continuar comercializando na clandestinidade com todos os riscos econômicos e financeiros que este tipo de comércio tem; ou sofrer esse isolamento internacional com dignidade defendendo até o último suspiro sua liberdade e independência. Apesar de ser um Estado fraco e ter nascido com todas as suas vulnerabilidades estruturais e infra estruturais, com seus problemas sociais e políticos, com suas dificuldades econômicas, a primeira escolha seria a última à qual nossos heróis nacionais se submeteriam. Desse fato, Haiti aceitou, malgrado ele, o comércio clandestino, eminentemente deficitário para os países impotentes como ele, e, em consequência, sofreu corajosamente o isolamento como sanção da comunidade internacional. Para entender por quê os países mais desenvolvidos queriam afastar o Haiti e proibir seu nome nos conselhos das nações, é importante compreender suas relações com os Estados Unidos em três etapas: primeiro quando Haiti era ainda uma colônia francesa; segundo, após sua independência, mas tratado como Estado paria; terceiro, quando, oficialmente, o Departamento de Estado em Washington decidiu reconhecer sua independência.
2. ESTADOS UNIDOS E A COLÔNIA FRANCESA DE SANTO DOMINGO (1789 – 1803)
As relações, quer sejam comerciais ou diplomáticas, entre Estados Unidos e Santo Domingo nesta época, eram tímidas, ou seja, do ponto de vista prático, não se desenvolveram como deveriam ser. Isso pode se explicar levando em conta três elementos. Primeiro, trata-se de uma colônia francesa, dominada e controlada pela Metrópole francesa, então, propriedade exclusiva da França. Segundo o Pacto Colonial – que se aplicou em Santo Domingo só a partir de 1765, a última colônia francesa onde chegou –, nenhuma colônia francesa pode comercializar ou empreender qualquer tipo de relação com um outro país sem a autorização expressa da Metrópole. Este Pacto proíbe categoricamente qualquer forma de aprovisionamento em matérias primas das colônias francesas por uma outra nação. A Metrópole se responsabilizou por esta tarefa. Porém, como ela não podia fornecer-lhes todos os produtos que elas necessitam, em particular, os produtos comestíveis, bebidas e outras, pela alimentação dos cólons e dos escravos, a Inglaterra e os Estados Unidos eram os principais parceiros comerciais da França nesse domínio. Em segundo lugar, como as colônias são, em termos econômicos, investimentos importantes; fontes de grandes interesses; extensão territorial da hegemonia francesa do ponto de vista do imperialismo político e cultural francês, para proteger e garantir esta hegemonia e também evitar a perda, sobretudo, de Santo Domingo, sua fortuna e melhor fonte de enriquecimento, a França temia a influência dos outros países, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos em particular. Inglaterra e Alemanha a respeito das rivalidades políticas já existentes na Europa; Estados Unidos por que são um país em crescimento rápido cujo sucesso, sendo previsível, poderia ser um obstáculo para a França. A tabela seguinte mostra como florescente era a economia de Santo Domingo.
Exportações de Santo Domingo em 1789
Produtos
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Quantidade em libras exportada
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Espaços atribuídos a produtos em metros quadrados
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Açúcar
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141.089.831
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46.827
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Café
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68.151.181
|
56.688
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Algodão
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6.286.126
|
15.754
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Índigo
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930.016
|
63.701
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Cacau
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150.000
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2.172
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Fonte: Turnier, op. cit., p. 25.
O comércio exterior em 1788 de Santo Domingo era avaliado a 214.000.000 francos franceses equivalentes de 42.000.000 dólares americanos na época. As exportações eram de Fr 152.460.000, importações de origem francesa eram de Fr 54.570.000 e de origem estrangeira Fr 7.038.000. Nesse período, os produtos importados dos Estados Unidos representavam um valor de Fr. 5.922.000 enquanto as exportações de Santo Domingo para os Estados Unidos não ultrapassavam Fr 3.263.000 (TURNIER, 1955, p. 25-26).
Em terceiro lugar, nessa época, Estados Unidos eram também uma nação muito jovem, recentemente independente, seja em 1776, mas, uma sociedade fortemente agrícola que produz muito e cresce rápido. A maior parte da sua produção era consumida pela sua população estimada a 40 milhões de habitantes. Os Estados Unidos estavam numa fase de criação de riquezas pouco avançada, então as suas exportações para a parte francesa de Santo Domingo, como acabamos de ver, eram fracas não somente pelo fato do controle e da restrição da Metrópole, mas, sobretudo, pelo limite do seu sistema de produção. Os Estados Unidos produziram suficientemente para cuidar e alimentar seus pares e poder exportar seus excedentes lembrando que durante esse período o país conheceu um crescimento econômico muito acelerado.
3. OS ESTADOS UNIDOS E “OS REBELDES DA ILHA DE SANTO DOMINGO”, POSSESSÃO FRANCESA (1804-1864)
Duas nações de um mesmo continente, de uma historia colonizadora semelhante, mas, que, sobre o plano de desenvolvimento democrático, humano e social, de crescimento econômico, de criação de riquezas, estão num processo de evolução completamente desigual, ou seja, enquanto um se fortalece, se enriquece e se amplia impondo-se no mundo através da sua passagem de um país agrícola a um país industrializado o outro se enfraquece, se empobrece, seu estatuto de Estado está sendo contestado e questionado, ou, talvez, esteja num processo de esperar a suprema decisão da sociedade das nações, neste momento, já se atrasou bastante das três Revoluções Industriais sucessivas que já ocorreram no mundo nos séculos XVIII, XIX e XX. Ambas as nações não foram tratadas da mesma maneira pela comunidade internacional: o respeito de uma é o desrespeito da outra; a honra de uma é a humilhação da outra. Enfim, duas nações com uma historia muito inspiradora de maneia distinta pela humanidade, mas, cujas relações não cessam de lembrar as do mestre com escravo no período colonial. Todavia, apesar de tudo isso, Haiti permaneceu um mercado importante para os Estados Unidos nos dois sentidos: os produtos haitianos como café, cacau, algodão e índigo – Haiti não podia contar mais com a produção da cana de açúcar cujas plantações foram arrasadas pelas guerras revolucionárias –conseguiram ocupar um lugar importante nas importações americanas; as matérias primas americana tinham um lugar de predileção no mercado haitiano. A tabela seguinte resume as importações dos Estados Unidos do Haiti:
Importação dos Estados Unidos do Haiti
Ano
|
Importação em milhões de dólar americano
|
1804 – 1085
|
7, 331. 983
|
1805 – 1806
|
6, 745. 484
|
TOTAL
|
14. 077. 467
|
Fonte: Turnier, op. cit., p. 95.
Segundo Turnier, as importações haitianas representavam um terceiro nas importações gerais dos Estados Unidos através do mundo. Para a França, o comércio que se faz entre Haiti e Estados Unidos é ilegal por que, de um lado, não respeita as regras da França que definem como essas relações devem ser estabelecidas com suas colônias, Haiti é ainda considerada como possessão francesa do outro. As pressões da França têm impactos psicológicos e diplomáticos sobre o Haiti e não afetam, na verdade, os Estados Unidos para quem elas foram uma grande vantagem para que continuem ignorando a independência do Haiti e tratá-lo como possessão francesa. Assim, entre 1809 e 1815, para o Departamento de Estado, as exportações americanas vão para as possessões francesas da ilha de Santo Domingo e não para um país livre e independente que se chama Haiti.
Exportações dos Estados Unidos para as possessões francesas (1809-1815)
Ano
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Exportações estimadas em Dólares
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1809-1810
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108.970
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1810-1811
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408. 885
|
1811-1812
|
287.631
|
1813-1814
|
178.179
|
1814-1815
|
1.805.039
|
TOTAL
|
2.788.704
|
Fonte: Turnier, op. cit., p. 104.
O dilema é que, tendo sido reais, fortes e constrangedoras, as pressões da França não concerniram só os Estados Unidos, mas, qualquer país do mundo foi intimado pela França a cessar as relações com Haiti no âmbito da política do seu isolamento internacional, por outro lado, essas pressões, não podiam, na verdade, impedir um ato oficial de reconhecimento do Estado do Haiti pelos Estados Unidos. A França topou e promoveu ferozmente o isolamento do Haiti nos conselhos das nações. A refuta do Departamento de Estado do reconhecimento da nossa independência não tem nada a ver com as pressões da França, foi, de preferência, uma decisão deliberada sua, pois, malgrado a lei de 28 de fevereiro de 1806[2], até 1860, os Estados Unidos continuaram comercializando na clandestinidade com Haiti e sempre o consideraram uma possessão francesa e não país independente[3].
Haiti, sétimo parceiro comercial importante dos Estados Unidos, permaneceu, até 1892, o terceiro grande fornecedor do café dos Estados Unidos após Brasil e Cuba (Turnier, op. cit., p. 119, 154). Com efeito, antes de ser concorrido pelo café brasileiro, Haiti, após Cuba, representou o maior mercado em matéria de café nas importações dos Estados Unidos com uma quantidade estimativa de 14 414 251 livres entre 1824 e 1825. Porém, devido às crises econômicas e políticas internas, Haiti sofreu um declínio nas produções do açúcar, café, algodão e cacau (Ibid, p. 119-121). Os déficits do café nos Estado Unidos foram compensados pela madeira de Campeche, encontrada unicamente no Haiti entre 1879 e 1880 cuja exportação foi estimada a 115,6 milhões de libras (Ibid, p. 155).
Tudo isso pode nos levar a dizer que na perspectiva de estabelecer sua hegemonia, os Estados Unidos aplicaram uma diplomacia capitalista que, de qualquer forma, lhes foi fundamental na medida em que é ela que lhes permitiria de impor realmente seu imperialismo na América, nos países caribenhos, em particular, no Haiti e na República Dominicana. Ou seja, a diplomacia estasudense se revelou mais econômica, financeira e comercial do que política por que se funda nos interesses capitalistas. Ademais, a diplomacia americana não se faz com as belas palavras diplomáticas e jurídicas, e os Americanos, mesmo antes da Primeira Guerra mundial, entenderam perfeitamente que o poder econômico é a força central e suprema da diplomacia internacional para a dominação do mundo. Portanto, se devermos partir do Haiti independente em 1804, podemos dizer que os Estados Unidos consagraram pelo menos 60 anos a construir no Haiti a base dessa diplomacia do Dólar, para usar os próprios termos de Suzy Castor (1971), antes de manifestar a vontade de reconhecer oficialmente sua independência. Por quê? É isso que vamos tentar ver agora.
4. ESTADOS UNIDOS E O ESTADO INDEPENDENTE DO HAITI (1864 – 1915): NO CAMINHO DA OCUPAÇÃO
Por quê os Estados Unidos demoraram tanto a reconhecer o Haiti como um país independente e livre, enquanto a França, que estava lhe pressionando ao mesmo tempo perseguindo o Haiti, o fiz antes deles, seja em 1825, desde que Haiti tenha sido obrigado a pagar uma indenização? Não temos certeza que seja possível responder claramente a esta pergunta tão difícil que, há muito tempo, intriga e continua intrigando historiadores e especialistas das relações internacionais e diplomáticas. Todavia, é um fato real de que, para dominar um país em todo sentido, é preciso desvalorizar sua cultura e sua diplomacia; enfraquecer seu sistema social; trabalhar a aniquilá-lo, durante muito tempo, na sua política interna e externa; nacional como internacional. Ora, o reconhecimento da independência de um país é um dos atos altamente significativo na diplomacia internacional entre dois países e na consolidação dos interesses econômicos, políticos e culturais de cada um. Então, quando um país se recusa a reconhecer a independência do outro, é uma estratégia de restringir sua liberdade; de não tratar ele como igual e de limitar seu poder de decisão. Foi exatamente o que fizeram os Estados Unidos.
Com efeito, a diplomacia do Dólar serviu, durante 60 anos, a, por um lado, fortalecer a política estrangeira dos Estados Unidos no Haiti e criar um sistema financeiro no seu interesse e estabelecer um imperialismo cultural; enfraquecer até desvalorizar a política interna do Haiti, pelo outro. Pois, tanto o isolamento quanto o comércio clandestino, nenhuma dessas situações nunca foi no interesse dos Haitianos, mas no dos Estados Unidos que eram seu principal parceiro comercial. Portanto, não somente, existiu, ao mesmo tempo, uma concentração do comércio haitiano no mercado americano, enquanto os Estados Unidos têm outros parceiros por toda parte no mundo, mas sobretudo, os Estados Unidos, que, desde o início do século XIX, se afirmaram como lideres do continente, praticavam uma outra forma de sanção camuflada a respeito do Haiti durante esses 60 anos. Essa sanção pode ser explicada de duas maneiras: primeiro, o silencio, antes e depois, dos Estados Unidos perante as exigências da França sobre o Haiti para que ele pague a indenização pelo reconhecimento da sua independência, nesse sentido, os Estados Unidos se fizeram cúmplices desse crime imperdoável, segundo, o fato de que manter Haiti nessa situação de clandestinidade fragiliza sua soberania e independência e enfraquece seu sistema econômico que, a partir de certo momento, será invadido e controlado mais facilmente por eles.
Com efeito, na segurança de ter, finalmente, o controle do sistema inteiro haitiano: financeiro, econômico, político, cultural e social, e de ter acumulado muitos interesses comercial, financeiro e econômico no país, Washington começou, a partir de 3 de dezembro de 1861, a manifestar a vontade de tornar efetivo o reconhecimento oficial da independência do Haiti. Esta decisão, tão esperada pelo governo haitiano, foi comemorada pela chegada, em setembro de 1862, de uma primeira missão diplomática americana no Haiti, e materializada pela construção do primeiro consulado americano no Haiti. Isso traduz um primeiro passo muito significativo, pois, em comparação aos anos anteriores, ou seja, entre 1804 a 1860, todos os países com os quais Haiti se relacionou se contentaram a nomear um simples representante – às vezes sem uma carta oficial do presidente – pela proteção dos seus interesses e não no âmbito das relações diplomáticas, propriamente ditas, como isso se faz normalmente entre os outros países mais avançados do que o Haiti. Após longas negociações e discussões, as duas nações aceitaram, em 3 de novembro de 1864, assinar um tratado de caráter mais comercial do que político. Mas, este tratado constitui tanto a base da diplomacia dos negócios americana no Haiti como a certidão de nascimento das relações diplomáticas, do ponto de vista oficial e estático, entre Haiti e Estados Unidos. Assim, por este tratado a independência haitiana foi oficialmente reconhecida pelo Departamento de Estado, mas não do jeito que Haiti quer, mas na lógica dos Estados Unidos.
Apesar de não querermos entrar no detalhe desse tratado, que mereceria de um estudo analítico e crítico mais aprofundado, é importante dizer que, não apenas, este tratado abriu a porta da diplomacia haitiano-americana, mas sobretudo, foi um dos documentos mais importantes para o futuro da política americana no Haiti até o desembarque dos soldados americanos em 1915. Segundo Turnier, ele foi assinado pelo governo haitiano sem quase nenhuma modificação, exceto as cláusulas que impediram aos estrangeiros de possuir bens e propriedades no Haiti. O fato real é que o tratado foi redigido nos Estados Unidos e concebido nos interesses dos Estados Unidos e nas desvantagens dos Haitianos cujos interesses são sempre mal defendidos pelos seus dirigentes nas negociações internacionais. Com efeito, o tratado estipula três princípios fundamentais que, embora não vamos desenvolvê-los amplamente, merecem ser sublinhados. Trata-se, então, da cláusula da nação mais favorecida – lembrando que a França reivindicou antes dos Estados Unidos o mesmo privilégio –; do princípio da igualdade de tratamento entre comerciantes americanos e haitianos em matéria de impostos e do princípio da reciprocidade comercial[4]. Este tratado principalmente pode ser considerado como uma ferramenta que preparou a ocupação de 1915 na medida em que ele serviu a fragilizar consideravelmente todo o sistema financeiro, político e econômico do país. Ao ter assinado este tratado, Haiti liberou sua economia aos Estados Unidos.
É difícil entrar aqui nas considerações casuais, ao mesmo tempo complexas e interessantes, da ocupação americana, que, talvez, façam objeto de uma outra análise, mas, precisamos entender que o Tratado de 1864, pelo seu conteúdo e pelas suas exigências, preparou o caminho para que esta ocupação aconteça e, os dirigentes haitianos, ao se livrarem nos conflitos rivais pelo poder, não tinham tempo suficiente para refletir sobre essa ameaça que era previsível. Ora, se ela era previsível, ela teria podido também ser evitada. Mas, infelizmente, temos aceitado esta ocupação, que acabou de criar uma dominação mental mais poderosa e quase invisível, como uma fatalidade. De fato, esta ocupação foi imposta pela convenção americana de 16 de setembro de 1915[5], que é uma continuação para não dizer um cumprimento do Tratado de 1864, da qual levantamos alguns pontos importantes. No seu artigo II, esta convenção nomeou um cobrador geral americano com responsabilidade de cobrar e aplicar os direitos de aduana. No artigo V, foi nomeado pelo Departamento de Estado um conselheiro financeiro delegado junto do ministério das finanças, carregado de reorganizar a finança do país e aplicar as receitas destinadas. Por fim, foi, formal e radicalmente, proibido ao governo haitiano, sem a autorização expressa e direta do presidente dos Estados Unidos, de aumentar a dívida pública (Art. VIII) e de modificar os direitos de aduana (Art. IX) na perspectiva de não reduzir as rendas. Assim, a convenção de 1915, após dar uma base legal à ocupação, consagrou a concentração das riquezas nas mãos dos Estados Unidos, criou da república do Porto Príncipe, expulsou os camponeses das suas propriedades. A sociedade haitiana aprendeu alguma coisa desta ocupação? O que devemos fazer para sair não somente da ocupação onusiana atual, mas sobretudo da dominação mental?
5. O QUE TEM A APRENDER DA OCUPAÇÃO AMERICANA DO HAITI?
Vimos que com a França, antes de 1825, o cenário racista ficou pior. As diferentes apelações da França dos habitantes da ilha, deixam, facilmente, perceber o grau e a profundidade desses ódio e racismo: rebeldes, bandidos, bárbaros, burros, cruéis, canibais, são, por fim, qualificativos malditos que não se faltaram nos meios sociais racistas franceses para caracterizar os habitantes da república independente do Haiti. Portanto, as relações diplomáticas haitianas da pós-independência foram fortemente marcadas pelo racismo, pela homofobia, pelo tratamento desigual entre estados, pelas campanhas de desvalorização da historia revolucionária do Haiti e, por fim, pelo isolamento diplomático do país.
As relações entre Haiti e Estados Unidos, desde a proclamação da independência em 1804, mais oficialmente, a partir de 1864, são, em grande parte, responsáveis pelo agravamento deste processo de tratamento como alienado que o Haiti contemporâneo passou a sofrer. Duas razões ao menos poderiam explicar isso. Primeiro, os Estados Unidos, lideres incontestáveis da América desde o século XIX, sempre trataram Haiti como um Estado fraco, impotente e rebelde em relação a sua estrutura social, um Estado nascido em circunstâncias históricas excepcionais com muitas dificuldades socioeconômicas, em outras palavras, sobre o plano do comércio internacional, Haiti era visto como uma espécie de campo vazio onde se faz bem aos Americanos de desaguar seus excedentes de produtos, ou seja, um mercado sem concorrência e regra. Segundo, enquanto segundo país da América a ter conquistado sua independência e liberdade, Haiti sofreu também o racismo americano em toda sua integralidade e crueldade no sul dos Estados Unidos. Com efeito, segundo Cauna (2009), os grandes proprietários americanos de escravos do sul, racistas por excelência, eram categoricamente opostos a todo tipo de relações entre Estados Unidos e "esta parte francesa da ilha de Santo Domingo" , rebelde, burro e imbecil.
O fato é que os Estados Unidos, até 1806, ainda não foram completamente liberados da escravidão. No sul, só existem escravos, povos oprimidos, seres maltratados e escravizados, por isso, parece estratégico para os colóns americanos de proibir todo contato com essas massas revoltadas da ilha caribenha na perspectiva de evitar qualquer contaminação. Na verdade, a revolução haitiana não era completa também, pois, até que Dessalines tenha decido de liberar a parte este da dominação espanhol – um projeto que ele não conseguiu levar a sucesso – a escravidão era ainda lá uma prática dos Espanhóis. Porém, a diferença se reside não na forma, mas no conteúdo entre as duas revoluções. É que no caso dos Estados Unidos, são proprietários de escravos americanos e ingleses que continuaram com a prática da escravidão, enquanto no caso do Haiti foi uma prática clandestina dos Espanhóis que, finalmente, iam ser expulsos da ilha.
Após 60 anos, como vimos, o Departamento de Estado aceitou tratar Haiti oficialmente como um país independente e não igual. Portanto, numa tal situação, o que de bom e de progresso poderíamos esperar provir desse reconhecimento que, alguns anos depois, não ia impedir a ocupação americana querida e negociada pelas classes políticas dirigentes e pelas elites econômicas da época? O problema é que a ideologia dessas mesmas classes ainda é dominante, presente e forte em diversas áreas importantes da sociedade e da arena política. No sistema político haitiano, os adeptos dessa ideologia são cada vez influentes e detém, infelizmente, o monopólio de decisão e de concentração do poder. É por isso que estão tentando, em cada ocasião, justificar a ocupação americana ressaltando alguns aspectos positivos como: construções de infraestruturas, modernização do Estado, florescimento cultural, crescimento econômico, controle dos comércios internos e externos, utilização "racional" das receitas do Estado, uma certa soberania interna do Estado etc., sem, no entanto, nunca perceber que isso tudo foi feito no interesse exclusiva, completa e unicamente do ocupante e dos grandes empreendedores americanos, e que, além disso, as consequências que vieram depois tinham sido terríveis e desvendaram a face oculta dos falsos projetos desenvolvimentistas[6]. Assim, é terrificante e mesmo uma insulta à inteligência humana querer justificar a ocupação americana que, em tudo sentido, não foi menos um mal[7] que a colonização europeia.
Tal atitude ideológica precisa ser fortemente combatida, por que ela é uma reprodução de uma ideologia escravagista e colonizante que hoje em dia não pode ter seu lugar numa sociedade democrática e liberal que Haiti deve ser. Temos que afastarmo-nos de tal discurso maléfico de justificação. No entanto, não devemos ver a justificação em si como um ato simples ou inocente, ela é muito trabalhada e refletida, e seus instigadores e pensadores são ainda capazes de estar domesticando alguns pensamentos. Atrás desta justificação se escondem grandes interesses econômicos e uma apologia dos crimes cometidos contra o Haiti, por que, como a colonização, esta ocupação serviu a enriquecer uma parte da pequena burguesia exploradora haitiana e a enfraquecer consideravelmente nosso sistema político e econômico para que sejamos cada vez mais dependentes dos Estados Unidos, que nosso destino só dependa dos estrangeiros, e que, ao longo da historia, permaneçamos escravos mentais de um sistema poderoso que nos desumaniza.
Sim, nossa responsabilidade em tudo isso não pode ser ignorada, na medida em que, como disse Bourdieu (1992), entre o dominante e o dominado se estabelece um certo entendimento e acordo simbólico para que a dominação seja efetiva, em outras palavras, nenhuma dominação não pode ser possível sem o consentimento do dominado (Bourdieu, 1992, p. 116-149). Se Bourdieu está certo, Frantz Fanon (1961; 2001) nos mostra que a iniciativa de libertação e de descolonização física (no curto prazo), mental e psicológica (no longo prazo) pela revolução violenta pertence exclusiva e essencialmente ao povo oprimido. Lénine (1969), por sua vez, enfatizando também a revolução violenta, chamou muito nossa atenção sobre o fato de que apenas a revolução da classe proletária seja a verdadeira para sair da exploração excessiva da força do trabalho pelo Estado burguês e da escravidão mental. Nesse sentido, cabe ao povo haitiano saber se quer continuar a aceitar esse tratamento indigno e desumanizante que ele está sofrendo ou se vai sair dele por uma revolução social radical. Com efeito, esta revolução tem que acontecer. Uma revolução física e mental, a ser realizada pela sociedade organizada em grupos proletários e camponeses, para definir um novo pacto social, é única saída dessa dominação a fim de reconquistar nossa humanidade e dignidade e construir uma sociedade a partir dos nossos próprios concepções, crenças e valores.
Mas, falando de uma campanha de justificação desta ocupação – a ser chamada de campanha de intoxicação da opinião coletiva e tentativa de corrupção da inteligência – o que de bom poderíamos esperar de uma ocupação, que, na sua essência, é muito semelhante ao sistema colonial propriamente dito (é a mesma moeda com faces distintas)? O que poderíamos esperar de bom de uma ocupação que transformou o ser haitiano em um verdadeiro restavèk (subordinado, dominado, alienado, perplexo, desenvolvendo um complexo e um medo profundo da sua origem, cultura e historia)? Por fim, o que a ocupação americana poderia trazer de bom a um país que foi totalmente despojado da sua soberania, liberdade e cultura, princípios elementares e fundamentais da dignidade humana, a um povo cujo espírito foi trabalhado para odiar seu semelhante, a rejeitar sua religião, sua cultura, sua lei, sua pátria e sua nação?
Nada e absolutamente nada[8]!
A nosso ver, a única coisa, talvez de “bom”, a salientar de uma ocupação indigna e humilhante como esta, seria aprender dos erros que a provocaram e trabalhar para que eles nunca se repitam mais na historia nacional. É absurdo pensar poder triunfar no mal, na bestialidade e na vergonha! A ocupação americana foi um mal cujos somos, ao mesmo tempo, criadores, vítimas e curadores. Durante 100 anos temos gastado tempo, energia e saliva fazendo uma política apologética de uma ocupação que não deveria acontecer. Todavia, uma ótima oportunidade se oferece a nós hoje para rever isso, repensar e redefinir nosso destino, nossas maneiras de apreender o mal e os problemas a fim de manifestar nossa consciência de povo e romper, por uma revolução social radical, tanto com as velhas práticas imperialistas como com o escravagismo assalariado do tempo moderno. Colocada e entendida no seu momento histórico, a ocupação americana foi uma grande injustiça, o primeiro mal cometido contra o povo haitiano no século XX, da mesma maneira que o Código Negro de 1685, segundo André (2006) e Niort (2015), foi a maior absurdidade da modernidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em suma, neste artigo, foi demonstrado como Santo Domingo se liberou do inferno colonial europeu para reconquistar seu belo nome dos Índios Ayiti. Ele tinha como objetivo de analisar a trajetória histórica do Haiti nas suas relações com os Estados Unidos na perspectiva de mostrar, primeiro, que essas relações foram caracterizadas por um relacionamento de força no qual o dominante sempre detém o monopólio de decisão sobre o dominado e faz tudo para lhe impor sua lei, que essas relações, em segundo lugar, trabalharam a enfraquecer mais todo o sistema haitiano visto que o país nasceu com dificuldades e debilidades até então insuperáveis. A ocupação de 1915 acabou de justificar essas debilidades, pois, na base do Tratado de 1864, antes da intervenção brutal dos soldados americanos no Haiti, as principais fontes de interesses dos Estados Unidos foram: o cais de Porto Príncipe; a companhia elétrica; a companhia dos caminhos de ferro; a planície de cul-de-sac; o caminho de ferro nacional e uma participação de 40% ao Banco Nacional do Haiti[9]. Haiti quis um reconhecimento oficial da sua independência pelos Estados Unidos para ser tratado com igual e defender livra e energicamente seus interesses. Infelizmente, ele se enganou, este reconhecimento não trouxe nada de tal. Poucos homens valiosos e corajosos, como Hannibal Price e Anténor Firmin, conseguiram, apesar de tudo, defender com dignidade os interesses haitianos no exterior. Porém, a diplomacia, como tudo mundo sabe, não se faz com a literatura, a historia, a poesia e as belas palavras, é sempre uma questão de relacionamento de força, de poder econômico, tecnológico, técnico e cultural. Desde seu nascimento, Haiti não conseguiu organizar uma diplomacia forte capaz de evitar que sua independência esteja economica e politicamente hipotecada. Certo, Haiti tem feito uma revolução contra a escravidão física, mas, até então, falta a revolução da escravidão mental, a mais importante para valorizar o ser humano, promover sua cultura e sua historia, caçar nele o complexo de inferioridade e transformar o ser haitiano em próprio mestre do seu destino.
BIBLIOGRAFIA SELETIVA
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ARDOUIN, Beaubrun. Études sur l´Histoire d´Haiti. [S.I.: s.n.], [199-].
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_____________. Pour la révolution africaine: Écrits politiques. Paris: La Découverte, 2001.
FIRMIN, Anténor. De l´égalité des races humaines: Anthropologie positive. Québec: Mémoire d´encier, 2013.
LÉNINE, V. L´État et la révolution: La doctrine marxiste de l´État et les tâches du prolétariat dans la révolution. Moscou: Du progrès, 1967.
MADIOU, Thomas. Histoire d´Haiti. Port-au-Prince, v. 3, 1847-1848.
NIORT, Jean-Grançois. Le Code Noir: Les idées reçues sur un texte symbolique. Paris: Le cavalier bleu, 2015.
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TURNIER, Alain. Les États Unis et le marché haitien. Washington, 1955.
VERGÈS, François. Abolir l´esclavage: Une utopie coloniale: Les ambiguités d´une politique humanitaire. Paris: Albin Michel, 2001.
[1] O povo colonialista será curado do seu racismo e da sua enfermidade espiritual se e somente se, realmente, ele aceita considerar a antiga possessão como uma nação absolutamente independente (Tradução nossa).
[2] Para ceder, estrategicamente, às pressões da França, a lei americana de 28 de fevereiro de 1806 proibiu, na teoria, toda relação comercial entre Estados Unidos e Haiti, porém, na prática, as relações comerciais clandestinas continuam e os contrabandos aumentam.
[3] Para ter mais informações sobre as principais importações do Haiti dos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, e Holanda ver Turnier, p. 117-118.
[4] Para ter mais ideias ver Turnier, op. cit., p. 144 a seguir.
[6] Ver Sauveur Pierre Étienne (2005) para uma discussão mais aprofundada sobre este assunto.
[7] O mal, em qualquer sentido, se designa em si mesmo um mal e não pode produzir que efeitos nefastos e negativos. Porém, é possível, e mesmo imperativo apreender do mal para que o mesmo mal não se reproduza mais pela falta de memoria. Assim, dependentemente, da apreensão do mal, ele pode ser uma fatalidade ou um sinal para corrigir algo errado.
[8] Para ter mais conhecimento a respeito disso ver Suzy Castor. La Ocupación Norte Americana de Haiti y sus consequências (1915-1934). México, 1971; Sauveur Pierre Étienne. L´énigme haitienne: èchec de l´État moderne en Haiti. Montréal: Presses de l´université de Montréal, 2007; Alain Turnier. Les États Unis et le marché haitien. Washington, 1955.
[9] Interesse capital exclusivo dos Estados Unidos no Haiti
[*] Doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail de contato: jeandefabien1982@yahoo.fr Blog: jeandefabien1426blogspot.com.br.