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O IMPEACHMENT BRASILEIRO: ENTRE VERDADEIRO E FALSO?

Resumo

No dia 31 de agosto de 2016, ocorreu no Brasil um evento histórico importante com repercussões nacional e internacional: 61 Senadores votaram a favor da cassação definitiva do mandato da presidente Dilma Rousseff, afastada da presidência desde 12 de maio de 2016 no âmbito do processo comumente chamado impeachment. Este evento permanecerá marcante na memória social e histórica do povo brasileiro. Ao longo do acompanhamento do mesmo, há de interrogarmo-nos sobre o que é verdadeiro e falso à medida que tudo pareceu - na defesa, na acusação e no Plenário, onde se interagiam partidários e oponentes da Dilma - verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Este verdadeiro falso ou falso verdadeiro se articulou em torno do uso de uma palavra-chave: golpe. Com efeito, os partidários da Dilma - falando do impeachment - denunciaram um golpe, os seus adversários e acusadores contra-atacaram sustentando que não é golpe. Daí o dilema de determinar se o impeachment é golpe ou não. Mas, como ele não pode ser os dois ao mesmo tempo, pois o artigo tem um duplo objetivo: analisar se realmente o impeachment brasileiro - na sua complexidade - pode ser considerado como um golpe; entender se, talvez, o emprego deste conceito não tenha sido excessivo e em que medida esta excessividade influenciou a decisão final do Senado por ter sido tomada por uma esmagadora maioria.

Introdução 

A obtenção da medalha de ouro dos Jogos Olímpicos pela primeira vez na historia futebolística brasileira - uma conquista tão sonhada desde mais que 100 anos - e o impeachment abriram uma outra página na historia contemporânea do Brasil. Com o impeachment o país, por uma outra vez, atraiu as notícias mundiais. Como todo fato histórico, o impeachment brasileiro tem uma origem e ocorreu num contexto social, político e econômico bem peculiar. Gostaríamos de lembrar três cenários históricos fundamentais que deixaram mais ou menos claro um pressentimento original de impeachment. O primeiro começou com a oposição declarada do vice-presidente à Dilma. Com efeito, numa carta enviada à presidente em 2015, Michel Temer deixou claros seus sentimentos de desconfiança e de desconforto dentro do governo dirigido pela senhora e chamou a atenção dela sobre a necessidade de reunificar o país. ''Tenho mantido a unidade do PMDB apoiando seu governo [...]. Isso tudo não gerou confiança em mim. Gera desconfiança e menosprezo do governo[1]''. Segundo este trecho do conteúdo da carta, Temer se sentiu menosprezado e humilhado pela presidente.

O segundo cenário se relaciona, poucos tempos depois, à ruptura, em março de 2016, do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) com o governo da Dilma lembrando que este partido esquerdista era o melhor aliado íntimo de combate do PT há muito tempo. A partir daí, podemos dizer que Dilma começava a se enfraquecer e estava caminhando, gradativamente, para um processo de destituição. O terceiro elemento que não devemos nos escapar, é este abandono silencioso da Dilma pelo seu próprio partido, o PT (Partido dos Trabalhadores), que ficou calado e passivo durante suas acusações. Ainda muito menos discutido, embora interessante, este aspecto merece uma atenção peculiar. Com efeito, o partido se mostrou desconfiante e indiferente ao caso da Dilma e parecia ser mais interessado a outros assuntos como, por exemplo, uma eventual reforma em vez de um acompanhamento solidário à senhora. Ou seja, o PT procurava afastar-se e fugir de um dos seus líderes em dificuldade por toda parte, porque está querendo salvar sua pele deixando-o afogar.

Dilma mesma a um certo momento sentiu a falta deste apoio. Ela tinha muito pouco apoio deste partido de esquerda que chegou ao poder pela primeira vez com a eleição do Lula em 2003. Enquanto que Dilma estava enfrentando seus acusadores e oponentes, o PT se mostrou muito mole. Era possível observar, ademais, apesar de uma pequena minoria de senadores do PT que a defenderam, uma grande falta do apoio deste partido à Dilma até falar de uma ausência flagrante. Em outras palavras, o PT se afirmou impotente a assumir a defesa da sua própria chefe e a acompanhá-la nas suas adversidades. Portanto, durante o processo de impeachment percebemos que Dilma estava sozinha em frente de um duplo dilema: as acusações pertinentes e dolorosas dos seus adversários e a traição de alguns dos seus antigos e melhores partidários e aliados que a abandonaram num momento crucial em que ela precisava mais deles.

Além desses fatores, o processo de impeachment ocorreu num contexto social, político e econômico difícil para o Brasil: graves crises econômicas; inflações; desempregos; aumento dos produtos alimentares de primeira necessidade; escândalos de corrupção da Petrobras; denuncias contra megaeventos socioculturais com custo altíssimo (por exemplo, os Jogos Olímpicos cujos investimentos custam 51% do orçamento, U$ 4,6 bilhões segundo o jornal Folha); programas sociais do governo dificultados; movimentos sociais; Lula, o líder carismático do PT, perante a justiça enquanto que Dilma tentou nomeá-lo como ministro da Casa Civil, etc. Eram, entre outros, alguns fatos que precederam o impeachment. Não podemos, no entanto, esquecer o papel significativo de uma certa imprensa de direita no Brasil que, nas suas propagandas midiáticas, participou fortemente da desestabilização e do enfraquecimento da Dilma, do seu governo e do seu partido. Assim, enquanto que estamos assistindo um momento muito difícil do PT, o processo de impeachment nos convida a perguntar se não se trata de uma queda consumida ou de um fim deste partido na medida em que dois dos seus líderes principais, Lula e Dilma, estão sendo processados pela justiça brasileira.

O artigo não vai enfatizar todos esses fatores, mas pretende destacar algumas reflexões sobre o impeachment. Para isso, num primeiro tempo, nossa tarefa consistirá em entender o sentido histórico do impeachment que, desde seu início, é qualificado de golpe pelos partidários e advogados da Dilma. Na segunda parte, pretendemos discutir os caráteres legal, constitucional e institucional do impeachment tal como é concebido no campo político brasileiro. Tentaremos, em terceiro lugar, ressaltar dos argumentos da defesa e do discurso de depoimento da Dilma uma certa excessividade no uso do conceito de golpe e buscaremos determinar em que sentido esta excessividade influenciou a decisão final senatorial de 31 de agosto de 2016 de que resultam duas consequências previsíveis importantíssimas: Por um lado, Dilma Rousseff perdeu a comanda definitivamente do país mesmo se, felizmente, ela não seja impedida de exercer por um período de oito anos seus direitos civis e políticos, por outro lado, seu antigo vice-presidente, Michel Temer - suspeitado de ser o principal conspirador e traidor desta destituição - se tornou, automaticamente, o presidente atual do Brasil para assumir o resto do mandato da presidente destituída. Por fim, se a quarta parte quer entender o lógico de votação do impeachment no Senado, num quinto tempo, verificaremos alguns problemas que põe este argumento de golpe.


1. O significado histórico do impeachment brasileiro

O processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff já, desde seu início em outubro de 2015, se inscreveu nos anais da historia não somente do Brasil, mas também da historia mundial. Por que? Primeiro, pelo fato de que o Brasil - a despeito de todas as realizações e de todos os progressos sociais e  econômicos nos últimos dez anos do Partido dos Trabalhadores (PT) - não tinha medo nem vergonha de acusar de corrupção, de crime de responsabilidade e de crimes fiscais aquele regime político, que, desde a acessão de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder, conseguiu reduzir consideravelmente a pobreza e permitiu ao país se tornar, entre 2012 e 2014, a sétima maior economia mundial. É preciso ter muita coragem e audácia para fazer isso. Em segundo lugar, é pela primeira vez na historia política brasileira que uma presidente envolvida num processo de impeachment, acusada e afastada do seu poder demonstrou tanta perspicácia, coragem, determinação, força e perseverança para ir até o fim na comprovação e na defesa da sua inocência perante um tribunal legislativo que representava o Senado federal brasileiro. 

O terceiro aspecto histórico do impeachment vem de um sentimento pessoal, porque era pela primeira vez da minha vida de jovem que eu assisti, desde o início até o julgamento final, um processo de destituição tão contraditório, confuso e controverso de uma presidente oriunda das eleições democráticas. Ator e construtor da historia, todo ser humano sonharia viver um momento histórico excepcional como este na sua vida. De fato, como o terremoto do Haiti, em janeiro de 2010, o impeachment brasileiro, malgrado sua perplexidade e complexidade, foi um dos grandes momentos históricos marcantes da minha vida que me acrescentou uma compreensão a mais do Brasil. Uma satisfação pessoal certo, mas também uma grande confusão. Satisfação não no sentido de alegria, de contentamento, de comemoração, de festividade, pelo contrário, de profundos confusão e questionamentos sobre o que traduziria realmente este processo. Por fim, o impeachment constitui um momento histórico interessante tanto pelo Brasil como pelo mundo na medida em que desde seu início até seu fim era super difícil identificar quem estava certo ou errado; quem dizia a verdade ou a mentira; quem enganava o povo - a eterna vítima - e quem queria salvá-lo. Era um processo muito duvidoso. 

Em resumo, além da sua historicidade, o impeachment era marcado pelas suas dúvidas e confusões. Era complicado localizar o lugar de onde se sairia a verdade ou a mentira; dissociar o verdadeiro e o falso. À ideia de golpe a acusação e os senadores oponentes à Dilma sempre respondem pela legalidade, constitucionalidade e legitimidade do impeachment defendendo que se trata de um processo que está sendo conduzido sem espírito de passionalidade, de emoção e de injustiça. Eles eram, radicalmente, convencidos que estavam na verdade, a constatação não era diferente no lado dos partidários da senhora. Nesse caso, só a historia - no seu papel de prospectividade - poderá dizer no futuro quem estava certo ou errado, saberá classificar e separar verdade e mentira. Pois, a historia não existe só para explicar o passado nem não se escreve unicamente no passado, ela é também prospecção no futuro da consequência dos atos cometidos no presente. Dito de outra maneira, as ações presentes de hoje, que se tornam passadas pela amanhã, ao entrarem nos anais da historia social e humana, determinam o futuro. Podemos assim dizer que a historia é presente, passado e futuro e o impeachment brasileiro se inscreve num dinamismo histórico e sociológico de falso verdadeiro e verdadeiro falso. 


2. Definição do impeachment e caráteres legal, constitucional e institucional do impeachment brasileiro

O impeachment é um direito concedido pela constituição e pelas leis nacionais ao poder legislativo de acusar o membro de um governo cujos atos são julgados repreensíveis e ilegais. Ele consiste, literalmente, em um processo de destituição que, no caso da comprovação da veracidade dos fatos, tende a cassar, definitivamente, o mandato constitucional e legal de um membro do governo com outras consequências adicionais como perda dos direitos civis e políticos que resultariam dos procedimentos extrajudiciários penais e civis. O impeachment na sua concepção desenvolve uma certa relação com o princípio de Montesquieu que quer que um poder limite um outro poder se este for suspeitado de violar a constituição e as leis. Com efeito, surgido na Grã Bretanha, no século XIV, este processo de destituição constitui um instrumento político e jurídico poderoso nas mãos do parlamento para recordar os grandes governantes do Estado como, por exemplo, presidente e ministros, que podem ser julgados por seus próprios atos inconstitucionais e ilegais. Assim, o primeiro caso de destituição foi sofrido, em 1376, por William Latimer na Inglaterra.

Na legislação brasileira, a constituição federal de 1988, em seu Art. 52 incisos I e II, elabora uma lista de personagens passíveis de ser processados e julgados pelo Senado Federal. As leis definem mais ampla e detalhadamente os crimes que levam a este processo. Com efeito, previsto pela Lei de 10 de abril de 1950 que estabelece os fatos que o exigem, o pedido de impeachment no Brasil é um direito que cabe a qualquer cidadão ordinário (Art. 14) na medida em que este detém provas e testemunhas suficientes para sustentar suas acusações, portanto será admitido um processo em impeachment caso tiveram denuncias dos crimes definidos na lei referente. Segundo esta lei, são crimes de grande gravidade que podem causar um impeachment. Dentre esses crimes a partir dos quais um processo de impeachment pode ser engajado podemos sublinhar crime de responsabilidade, crime contra a existência da união, crime contra a lei orçamentária... Todos esses crimes e outros contidos nesta lei caracterizam a legalidade e a constitucionalidade do impeachment. Todavia, existe ainda no espaço socio-jurídico brasileiro, um debate contraditório muito animado em torno da interpretação da noção de crime de responsabilidade.

Existe tudo um procedimento complexo do impeachment, porém, tentamos resumir aqui seu percurso institucional. Basta, com efeito, após reunir todos os documentos que comprovam os fatos, encaminhar o pedido assim formalmente elucidado e constituído para a Câmara dos Deputados, que é a primeira instância institucional competente para receber um pedido de impeachment e se pronunciar sobre sua admissibilidade. A constituição de um gabinete de advogados no sentido do respeito da juridicidade do processo é muito recomendada porque, às vezes, o acusador pode não dominar todos os termos jurídicos assim como os procedimentos judiciários, nesse sentido, um gabinete de advogados, seja público ou privado, se faz muito importante. Não se trata de uma obrigação feita pela constituição federal nem pelas leis, todavia, na prática jurídica, seria eminentemente necessário fazer isso. Portanto, resumidamente, o impeachment brasileiro começou, legal e institucionalmente, na Câmara dos Deputados. Não foi diferente na Inglaterra quando fora a Câmara dos Municípios que deu início ao processo de impeachment de William Latimer em 1376.

No caso brasileiro, observamos que esta primeira etapa do processo foi respeitada na Câmara dos Deputados que tratou o pedido em impeachment segundo as leis nacionais e seus regimentos internos. Após todos os trâmites legais e formais, os debates contraditórios de uma duração de sete meses que seguem sua aprovação por 367 votos a favor, 137 contra, 7 abstenções e 2 ausências, os deputados encaminharam o pedido de impeachment ao Senado que terá o direito de tomar, em última instância, a decisão final. De fato, pelo que temos observado, o impeachment respeitou, cuidadosamente, os procedimentos formais, legais, jurídicos e institucionais: Os advogados da Dilma asseguraram, plena e integralmente, sua defesa; a acusação por sua vez assumiu seu papel com excelência; por fim, no Plenário onde os senadores se erigiram em juízes os debates contraditórios aconteceram perfeitamente. Na forma, esses procedimentos do impeachment pareceram simples, não obstante, no que diz respeito ao conteúdo, ele era um processo complexo e complicadíssimo à medida em que provocaria debates dialéticos e retóricos entre verdadeiro e falso muito animados. Saber se as regras de imparcialidade, de transparência e de neutralidade foram respeitadas aí é um outro debate.

O impeachment, não só Brasil, mas também nos Estados Unidos e na Inglaterra (onde nasceu) não é um processo tipicamente jurídico nem exclusivamente político. Mas, pelo que temos observado no caso brasileiro, ele era simultaneamente conduzido pelos poderes legislativo e judiciário, ele era os dois ao mesmo tempo. Nesse caso, se trata de um processo que tem uma natureza híbrida no qual se atuam o judiciário e o legislativo contra o executivo. Apesar de ter um caráter híbrido na teoria, na prática, por ter sido conduzido pelas instituições eminente e essencialmente políticas, a saber, a Câmara dos Deputados e o Senado, o impeachment brasileiro teve uma natureza dominantemente política. Isso significa que é preciso ter um sistema político com instituições políticas fortes como, por exemplo, o parlamento e a justiça para que o impeachment não fique somente no papel, mas possa ser efetivamente aplicado quando for necessário.

Aliás, a qualificação de golpe (parlamentar ou institucional) que cai sobre o impeachment brasileiro provém, sobretudo, desta predominância política, ou seja, pelo fato de ter sido mais reduzido ao seu aspecto político do que jurídico. Todos os atores nele envolvidos o reconhecem. Mas se, como acabamos de ver no caso brasileiro, todos os procedimentos constitucionais, legais, judiciários, jurídicos, administrativos e institucionais foram, a nosso ver, cumpridos, a saber, a reunião das provas materiais essenciais, o respeito da constituição e das leis, a participação das instituições competentes, o cumprimento impecável do papel da acusação e da defesa, por fim, os debates públicos contraditórios competentemente conduzidos, em que sentido poderíamos chamar o impeachment que ocorreu no Brasil de golpe, seja institucional, parlamentar ou clássico?


3. A ênfase sobre o argumento golpista do impeachment

Desde o início do processo de impeachment, há um aspecto interessante que nos chamou muito atenção, se trata do debate ideológico e conceptual em torno da palavra golpe que foi usada frequentemente, em particular, pela defesa para caracterizar o impeachment. A própria presidente, tanto nas suas diferentes intervenções e entrevistas midiáticas quanto no dia J do seu depoimento (29 de agosto de 2016) no Senado, empregou, repetidamente, o mesmo conceito para assegurar sua defesa perante um Senado nos olhos do qual poderíamos ler uma condenação prévia da senhora. Não podemos contar, assim, quantas vezes esta palavra foi evocada pelos defensores e partidários da Dilma tanto na sociedade como no Senado não para qualificar o processo do impeachment, mas para desqualificá-lo. Talvez, eles estejam certos desde que possuam provas suficientes para mostrar que não há crime de responsabilidade nem pedaladas fiscais cometidos pela senhora para ter o impeachment. É nessa perspectiva que estão defendendo veementemente a tese de golpe: um golpe clássico, parlamentar, judiciário ou institucional na política moderna brasileira como apontaram. Podemos dizer, resumidamente, que se tratava de uma das armas poderosas de combate que a defesa empregava para desmontar a acusação demonstrando a falsidade dos seus argumentos.

3.1. A expressão de golpe no depoimento da presidente Dilma Rousseff no Senado

Os debates já se anunciam muito provocadores e polêmicos entre a defesa e a acusação no Plenário que ia ser investido da presença do personagem chave do processo, a saber, a presidente afastada Dilma Rousseff que está sendo aguardada no Senado no dia 29 de agosto de 2016 às 9h da manhã para poder assumir, pessoalmente, sua defesa, ser ouvida pelo presidente do STF e interrogada pela defesa, pela acusação e pelos senadores, oponentes como partidários. Neste dia, que marcou a quarta sessão da fase do julgamento final do impeachment, o mundo vai saber se Dilma é culpada ou não. Com efeito, no discurso de depoimento da presidente afastada - além de reiterar e reforçar ainda mais fortemente o argumento de golpe - ela defendeu corajosamente sua inocência e denunciou os abusos e a injustiça que, segundo ela, se aplicam contra ela. ''Não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente[2]'', disse ela. Isto tendeu a justificar, por uma outra vez, seu caráter de guerreira, de combatente incansável, de defensora da democracia.

Podemos ressaltar que o depoimento da presidente, neste dia de 29 de agosto de 2016 no Senado, se articulou em torno de vários pontos dentre os quais três principais chamaram mais nossa atenção: a historia pessoal da senhora, sua luta pela democracia e a denuncia do golpe. Mais uma vez, esta expressão de golpe à qual nos interessamos mais volta e é de uso da própria presidente. Após lembrar de um lado a senhoras senadoras e senhores senadores seu percurso de resistência à ditadura que ela mesma sofreu porque foi presa injustamente enquanto que ela era jovem, do outro lado sua luta incansável pela democracia, ela reconstituiu a historia das diversas tentativas de golpe que os presidentes que a antecederam enfrentaram. Alguns, como João Goulart, conseguiram superar um golpe parlamentarista outros não. Outros ainda, sob a pressão das elites cujos interesses foram ameaçados, se suicidaram. Foi o caso de Getúlio Vargas.

Essa lembrança explica que no Brasil, como nos outros países da América Latina, existe uma cultura política de golpe. golpe militar particularmente. Por ter sido usado pela própria presidente, o conceito de golpe, acreditamos, acabou de ganhar outras conotação, repercussão, consequência e outro significado, portanto, seu uso era suscetível alterar, hipoteticamente, as tendências da votação final. Com efeito, como até seu comparecimento no Senado, a senhora incarnou uma instituição prestigiosa que é a presidência, e como os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário se devem respeito recíproco entre eles tanto nas expressões nas ações quanto do ponto de vista ético e moral, pois nos é difícil conceber que um possa qualificar outro de golpista. Seria institucionalizar o golpe. Isso não somente parece muito perigoso pela democracia como também pode ser interpretado como uma espécie de ofensa e ameaça moral às instituições republicanas. Assim, nas palavras da senhora, golpe significaria usar pretextos e falsos argumentos, não ter crimes de responsabilidade respectivamente definidos na constituição, empregar retórica jurídica na base das leis e da constituição para derrubar um governo democraticamente eleito. ''São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador[3]''Sempre golpe de estado resulta da ruptura histórica e democrática, apontou ela.

O depoimento da presidente, que abriu o quarto dia final do julgamento foi seguido pela etapa interrogatória da defesa, da acusação e dos senadores-juízes (partidários e oponentes) à qual era submetida a senhora. Era igualmente a ocasião para a senhora fazer valer seus direitos como acusadora. A maioria dos senadores-juízes que assistiu seu discurso se sentiu decepcionada e ofendida após ouvir tantas vezes o uso da palavra golpe. O voto final, no dia 31 de agosto, ia refletir esta tendência. Com efeito, após seis dias de debates contraditórios dos últimos momentos do impeachment, uma maioria esmagadora de 61 senadores cassaram o mandato da Dilma, só 20 quiseram que ela fique para continuar a assumir a presidência. No processo do impeachment, os senadores desempenharam um papel de juízes enquanto que a acusação era representada pelos juristas Miguel Reale Jr. e Janaina Paschoal e a defesa assegurada pela Advocacia-Geral da União composta por José Eduardo Cardozo, Nelson Barbosa e Kátia Abreu.

3.2. O argumento de golpe nos argumentais da defesa

A noção de golpe efetuou, com frequência, um certo vai e vem nos vocabulários da defesa ao longo do desenrolamento deste processo. Sem precisar voltar muito atrás do seu uso na Câmara dos Deputados, José Eduardo Cardoso, o advogado da Dilma, já o qualificou várias vezes desta maneira porque, disse ele, ''impeachment sem crime de responsabilidade configura golpe'' (Jornal do Senado, 4 de abril de 2016). As denuncias continuam da mesma forma perante o Senado quando, em 2 de maio de 2016, a defesa declarou: ''do jeito que está sendo feito, o processo caracteriza golpe (Jornal do Senado, 2 de maio de 2106). É claro que o jogo se fazia muito sensível num ambiente em que temos uma acusação que sustenta e uma defesa que recusa. Sem negar os aspectos políticos e politizantes, o fato é que os argumentos de golpe da defesa nos debates ocorridos na comissão especial senatorial não conseguiram convencer a acusação e os senadores-juízes e duvidosos. Na verdade, a acusação não precisava ser convencida e nunca o será porque seu papel é acusar.

Era muito instrutivo assistir estes debates dialéticos e contraditórios em que a retórica e a erudição não se faltaram. Mas, sobre esta estratégia empregada tanto pelos defensores da presidente Dilma Rousseff como por ela mesma segundo a qual o impeachment seria um golpe de estado, estou, cada vez mais, me questionando: Será que era a melhor argumentação estratégica da defesa para, realmente, defender a acusada? Mas, se a acusada fizer a mesma coisa, será que eram, em ambos os casos, as melhores técnica e formula de combate? Qualificando de golpe um impeachment previsto pela constituição, pelas leis nacionais e respeitosa dos procedimentos não seria ofender os Senadores e Deputados? Não seria desvalorizar e cuspir sobre a prestigiosidade das instituições políticas como a Justiça, o Congresso, mesmo o Executivo, cujo, apesar de tudo, Dilma incarnou a figura? O qualificativo ''golpista'' não era forte demais e não seria também uma forma de violência simbólico-verbal contra os juízes-senadores e, assim, um desrespeito à sua função? Interrogando-me dessa maneira, estou me interessado mais em analisar no sentido de que o uso da expressão de golpe foi vantajoso ou desvantajoso pela Dilma e se ele não estaria à origem da sua destituição acelerada. Ou seja, o que aconteceria se não fosse usado tão excessivamente este conceito que parece ter um caráter ofensivo e agressivo para os parlamentares?

As palavras têm seu sentido. Cada conceito é, geralmente, polissêmico. Não temos a pretensão de fazer um curso de técnica de uso dos conceitos a estes eminentes, competentes e combatentes advogados que defenderam brilhantemente a Dilma. Mas, com o qualificativo de golpistas atribuído aos senadores estamos percebendo que ele acelerou mais rapida, severa e colericamente a destituição da Dilma Rousseff. Gostaríamos de considerar um pressuposto fato único para tentar desenvolver nossa argumentação. Trata-se das variações dos votos dos senadores desde a aceitação do relatório do senador Antonio Anastasia até o julgamento final. Esta escolha se justifica pelo fato de que o Senado era a última instância a decidir se deve condenar ou inocentar a acusada do processo de impeachment. É, além disso, a instância perante a qual a defesa poderia jogar todas as cartas para tentar impedir que sua decisão seja a favor da continuação do processo. Daí a pergunta seguinte: Como e por que no último dia do julgamento final mais senadores do que nunca votaram contra a presidente enquanto ela precisava de menos que 54 votos para se ver restabelecida no seu cargo?


4. Análise da votação do impeachment no Senado

Após ter passado 7 meses na Câmara dos Deputados, o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff chegou, finalmente, em abril de 2016, ao Senado Federal - lembrando que cada uma dessas instâncias legislativas decide separadamente em plena independência e autonomia e, também, a decisão de uma não afeta a da outra. O Senado tem que decidir da admissibilidade do relatório da Câmara dos deputados a fim de determinar se sim ou não se continuará o processo. Para isso, em abril de 2016, foi eleita uma comissão especial de impeachment senatorial para estudar e avaliar o relatório da Câmara dos Deputados. No caso o Plenário aceitar o relatório da comissão, o processo de impeachment vai prosseguir, ele será suspenso no caso contrário. Infelizmente, após a audição de muitos eminentes peritos e testemunhas tanto na defesa como na acusação, os senadores-comissários chegaram à conclusão de que o relatório dos deputados é constitutivo de provas materiais suficientes para que o impeachment se prossiga. De fato, em maio de 2016, em sessão não plenária 15 contra 5 senadores aprovaram o relatório apresentado pelo senador Antonio Anastasia.

Embora estejamos confusos sobre os critérios de votos dentro de uma comissão especial senatorial de impeachment formada por 21 titulares e 21 suplentes, podemos estabelecer que com 15 contra 5 a maioria não era tão grande. Todavia, a defesa tinha a plena responsabilidade de buscar oportunidades favoráveis para conseguir o arquivamento do processo nas comissões ou em qualquer etapa em que ele esteja. Não tendo conseguido, então, o processo prossegue ao Plenário que terá a prerrogativa de apreciar o relatório. Chegando ao Plenário - aí é o princípio de 2/3 que se aplica - o relatório provocou ainda outros debates durante os quais a defesa e os senadores aliados da Dilma continuam defendendo o argumento de golpe. O Senado em sessão plenária teria que aprová-lo ou rejeitá-lo. Assim, uma aprovação significaria automaticamente o afastamento da Dilma por 180 dias, por outro lado, abriria um processo para o seu julgamento.

De fato, em 12 de maio de 2016, o Senado composto de 81 senadores, reunido em sessão plenária, se pronunciou com 55 (2/3 + 1) (67,9%) votos a favor e 22 (27,16%) contra sobre o relatório da comissão senatorial para a abertura do processo de impeachment. Este voto afastou, de maneira provisória, Dilma Rousseff do poder por 180 dias como foi previsto. Consequentemente, se inicia, primeiro, o processo de seu julgamento, segundo, o Brasil entra numa fase política transitória assumida desde a mesma data pelo vice-presidente como previsto na constituição federal e, terceiro, o STF assume agora o processo de julgamento. Vimos que com dois votos a menos (53), Dilma teria podido escapar a este afastamento provisório, porque precisava-se só 54 senadores para aprovar o relatório. O que significa portanto que não faltou muito para que o processo tenha sido suspenso. Podemos atribuir esta decisão do Senado à uma pré-destituição porque se a defesa não tem conseguido impedir o impeachment nestas fases que chamamos preliminares, pois lhe será mais difícil fazê-lo nos dias do julgamento, fase definitiva. Também, esta decisão, embora não definitiva, traduzia uma certa convicção dos senadores de que Dilma deverá ser julgada por crimes cometidos.

Com efeito, o afastamento da presidente foi seguido por três meses de debates no Senado, e, entre 9 e 10 de agosto de 2016, 59 (2/3 + 5) senadores decidiram que Dilma Rousseff vá à fase de julgamento final contra 21. Esta decisão dissipou todas as dúvidas e colocou fim ao mistério para saber se ela ia sim ou não ao julgamento final. Se tornou assim claríssimo que a acusada será efetivamente julgada pelo Senado. A fase deste julgamento final, assumida pelo STF, teve por objetivo condenar Dilma ou inocentá-la definitivamente. A presença desta instituição judiciária permitiu atenuar um pouco os aspectos políticos dominantes do processo e lhe confere um certo caráter jurídico-judiciário legítimo. 

Em comparação à votação de 12 de maio, estamos constatando que, na de 10 agosto para determinar o julgamento, a acusação e a oposição obtiveram 4 votos a mais. No dia do afastamento da senhora presidente, dentre o número de 81 senadores, 77 têm, manifestamente, expressado seu voto enquanto que quatro ficavam indecisos ao se terem abstido. Se a votação determinante da entrada da Dilma em julgamento era mais que a do seu afastamento, resulta que a defesa não conseguiu convencer e ganhar a confiança até dos senadores duvidosos. Entretanto, a oposição e a acusação, por sua vez, conseguiram ganhar 4 votos a mais. O que significa que suas argumentações convenceram ainda mais pessoas e, talvez, a percentagem vá crescendo no mesmo ritmo. Em outras palavras, se, de um lado, estes 4 senadores eram duvidosos, é que estavam perplexos e sua convicção no ar no que diz respeito aos argumentos das duas partes. Do outro lado, se eles foram ganhados pela defesa, isso poderia complicar o processo esperando seu eventual arquivamento.

O que estamos constatando é que a votação final era muito maior do que todos os outros votos no Senado desde o início do processo. O que explica isso? Talvez, aspectos múltiplos, plurais e complexos. Porém, na nossa apreciação, gostaríamos de sublinhar alguns elementos. Primeiro, a defesa e a Dilma não conseguiram libertarem-se da ideia de golpe, lhes era um tipo de obsessão. Um argumento inconsistente e ofensor para os maiores senadores-juízes. Em segundo lugar, os senadores oponentes que recusam o argumento de golpe eram maiores que os partidários, e o número em vez de diminuir, crescia cada vez mais. Devemos considerar também, em terceiro lugar, que a defesa falhou no seu papel de predileção de convencer. por fim, mesmo se fosse difícil avaliar o conteúdo das argumentações que ela apresentou, o resultado final era bastante suficiente para entender esta fraqueza e impotência das mesmas.

Todavia, se a defesa perdeu de um lado, ela conseguiu alguma coisa do outro: Segundo sua demanda, a votação pela perda dos direitos políticos aconteceu separada, isso resultou na notação de 42 senadores a favor e 36 contra. O que faz com que Dilma, apesar de ser destituída da presidência, possa continuar a exercer seus direitos políticos, porque precisava-se de 54 votos a favor para perder esses direitos. Em outras palavras, a presidente Dilma Rousseff poderá assumir cargos políticos como se candidatar às eleições presidenciais. Se segundo alguns senadores, este procedimento de votação separada pela perda dos direitos político da presidente era inconstitucional e ilegal, ele era, no entanto, favorável à Dilma por quem o impeachment era puro pretexto para destituí-la por não ter cedido às chantagens. No seu discurso de depoimento, ela deixou claro entender que o impeachment era o preço a pagar por sua honestidade e seu rigor na gestão das coisas públicas, tais qualidades eram um verdadeiro obstáculo aos interesses das elites econômicas conservadoras brasileiras. Assim, desde o início do processo, a ideia de golpe além de convencer ninguém, apresenta alguns problemas.


5. O problema do argumento de golpe

Por golpe devemos entender a maneira inconstitucional e ilegal de conquistar o poder sem passar pelas eleições normais derrubando o governo legitima, legal e constitucionalmente reconhecido. Preparado, geralmente, num perfeito segredo com a cumplicidade de uma parte da sociedade política e da sociedade civil um golpe resulta da traição, da conspiração e do uso da força. Uma das características do golpe é que ele é surpresa e surpreende sempre a população e aqueles que o sofrem. Falar de golpe quando três poderes estavam se envolvendo num processo que respeitou as prerrogativas constitucionais e legais é incompreensível e problemático. Qualificar de golpe um processo que durou exatamente 11 meses é também chamar, direta ou indiretamente, de golpistas deputados, senadores-juízes, presidente do STF, símbolo do poder judiciário. Era possível e previsível que uma tal qualificação detone a decepção e a cólera dos senadores. Além disso, é compreensível esperar que um tal termo de golpe seja usado por uma defesa que está executando um trabalho de profissionalismo jurídico, porém, quando vier de uma presidente é outra coisa. O argumento de golpe usado de maneira reforçada e enfatizada pela presidente no dia do seu julgamento final era visto como uma provocação, porque colocou em questão a competência das instituições legislativa e judiciária. Desde o início do processo o argumento de golpe, sendo confuso, enviou, de fato, uma mensagem errada sobre o funcionamento institucional e político do Brasil.

A tese de golpe acusa uma certa ambiguidade na medida em que podemos supor que as duas partes estavam dizendo a verdade e que seus argumentos tenderam a confundir golpe e injustiça. Ela era, por outro lado, de difícil apreensão à medida que se confirmam os caráteres constitucional, institucional, legal e legítimo do impeachment. Se após ter sido apreciado, estudado e analisado por todas essas prestigiosas instituições como a Câmara dos Deputados, o Supremo Tribunal Federal, o Senado, o impeachment é qualificado de golpe, é que o Brasil está mergulhando numa crise de governabilidade, de corrupção e de descredibilidade institucional gravíssima. Os brasileiros se mostrariam, por assim dizer, desconfiantes nas instituições públicas brasileiras e o resultado desta desconfiança seria a agravação da vida social do povo e a instabilidade. Ademais, o golpe não é uma instituição, é uma ação brutal que, embora preparada, se cumpre na espontaneidade. Ou seja, golpear alguém é mandá-lo embora brutalmente do poder sem que este tenha o direito de defender suas opiniões. Num golpe não há tempo para discussões sabedoras, dialéticas e intelectuais como isso ocorreu no impeachment brasileiro. 

Outro problema que provoca a ideia de golpe é que ela tem uma conotação fortemente política e politizante. Se, realmente, não tivesse crime de responsabilidade, entendemos que era mais plausível falar de injustiça que golpe. Não estamos defendendo se houve golpe ou não. A defesa poderia certamente ter razão, porém, o que observamos é um uso excessivo e abusivo e, às vezes, incorreto e ambíguo do conceito de golpe que comprometeu muito a fiabilidade, a confiabilidade e a credibilidade dos argumentos da defesa apesar da sua força. 
Os senadores veem na palavra de golpe reiterada muitas vezes pela senhora presidente e seus partidários uma ofensa tanto a eles como pessoas físicos e eleitos quanto à instituição que eles representam e, também, uma ameaça à democracia e às outras instituições políticas da república. Eles se sentiam assim atacados na sua dignidade, autoridade e capacidade de ser dirigentes do país. Assim, se deveríamos ver no impeachment brasileiro um golpe é que Brasil está inovando alguma coisa que ainda não existe em nenhum país do mundo no sentido de que os golpes que a historia clássica mundial nos ensina e que aconteceram na América, na Europa e na Ásia são amiúde violentos, militares e surpreendentes, portanto, não obedecem  a todas essas etapas pelas quais passou o impeachment.

Alguns adversários da Dilma como, por exemplo, a senadora Simone Tebet, criticam a tese de golpe da defesa. 

Eu acho engraçado que aqueles que falam em defesa da democracia não falaram que foi golpe o impeachment do ex-presidente Collor. Aliás, eles o provocaram. Nem que foram golpe as inúmeras tentativas de impeachment contra Itamar [Franco] e contra Fernando Henrique Cardoso, diz ela (Jornal do Senado, 29 de abril de 2016).  

A ideia de golpe no contexto do impeachment brasileiro nos faz cair numa armadilha de retórica enganosa, perigosa, cansativa e desvantajosa para a sociedade e as instituições. A periculosidade da tese de golpe é que ela é muito perplexa e confusa e tende a desconfigurar, esconder e desnaturalizar a realidade. A tese de injustiça intervém também e nos parece mais razoável, porque a justiça em si não é sempre justa. Agindo com olhos fechados, ela condena, acidentalmente, inocentes em lugar de criminais. Embora isso aconteça raramente num sistema de justiça forte, não se trata de acreditar cegamente na infalibilidade da justiça. O impeachment, talvez, possa ser injusto e traduza uma grande injustiça contra a presidente Dilma, mas assimilá-lo ao golpe de estado fragiliza a construção da democracia e da governabilidade no Brasil.

Da mesma maneira que os olhos do mundo inteiro ficavam brilhando sobre o Brasil nos momentos da Copa das Confederações (2013), da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas e Paraolimpíadas (2016), os quais megaeventos deram ao Brasil uma grande visibilidade internacional, a comunidade internacional estava assistindo atenciosamente o processo do impeachment que, agora, do ponto de vista histórico e processual, já se inscreve na memória do povo brasileiro mesmo se seus efeitos vão continuar a se fazer sentir. Além destes eventos esportivos e culturais, acreditamos que, nos últimos dias do mês de agosto de 2016 após as Olimpíadas, o impeachment atraiu muitas atenções e provocou muitas interrogações e dúvidas no Brasil e no mundo, porque se tratava de tudo um sistema social, político, diplomático, econômico e jurídico em perigo. Nesse sentido, tanto na escala nacional como internacional, o futuro social, político, econômico e diplomático do Brasil dependia muito do resultado deste processo. Em resumo, a vida dos brasileiros e estrangeiros (empreendedores capitalistas sobretudo) estava na mão do impeachment. 


Considerações finais

Não podemos concluir este artigo sem sublinhar, em primeiro lugar, uma das ideias defendidas pelos partidários da Dilma durante este processo: É que se ela for cassada e que Temer assuma o poder, este se tornaria ilegítimo e usurpador de poder, pois o povo não votou nele, votou na Dilma. Nos é difícil entender esta ilegitimidade de um vice-presidente que a constituição nacional brasileira reconhece como sucessor imediato e direto do presidente eleito em caso de ausência, de morte, de impedimento e de destituição. É verdade que o povo brasileiro votou diretamente na Dilma, não no Temer, mas num sistema de presidencialismo - como nos Estados Unidos e no Brasil - o vice-presidente é eleito juntamente com o presidente e o substitui automaticamente em um dos casos supramencionados. Mesmo se no campo intelectual político brasileiro ainda não haja unanimidade sobre a natureza do sistema político brasileiro, mas a partir deste processo é claro entender que o Brasil adota como regime político o presidencialismo que, aliás, parece ser um dos regimes políticos que permite evitar a lacuna institucional.

Em segundo lugar, o fim do impeachment brasileiro nos deixa ainda numa grande perplexidade, incerteza, confusão  no que diz respeito à natureza imparcial e neutra dos senadores. Além disso, ele suscitou em cada indivíduo vivendo no Brasil uma improbabilidade do futuro do país. Pelo que percebemos, o senadores desempenharam um papel de juízes, mas, ao longo do processo eles apareceram muitas vezes com um comportamento de acusadores e oponentes através das suas expressões. Nesse caso, parecia que Dilma era previamente condenada e não precisava se defender nem ser defendida. Ou seja, os senadores eram juízes e partes ao mesmo tempo e poderíamos mesmo salientar que eles foram atravessados por uma certa obsessão de condená-la. Portanto, apesar de seus caráteres constitucional, legal e institucional é possível questionar a imparcialidade e a neutralidade dos atores do processo de impeachment brasileiro. Todavia, se devermos deixar de lado todo fanatismo, partidarismo, sentimentalismo, propagantismo, populismo e emocionalismo, podemos dizer que o impeachment brasileiro foi marcado por uma relação de força e traduz, a despeito de tudo, a potência, a capacidade e a força de um poder de limitar as ações do outro.

Jean FABIEN                                             

Campinas, 17 de setembro de 2016




[1] O conteúdo integral da carta de Michel Temer está disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/12/leia-integra-da-carta-enviada-pelo-vice-michel-temer-dilma.html. Acesso em: 15. Set. 2016.
[3] Ibid

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